Há 11 anos o SEEG publica anualmente, com cálculos feitos a partir de uma metodologia robusta e publicada numa das principais revistas científicas do mundo, as estimativas de emissão do Brasil. As análises do SEEG são tão sólidas que três estados brasileiros usam o sistema do OC para fazer os próprios inventários de emissões. Ano após ano, as contas do SEEG mostram que a devastação perdulária dos nossos biomas responde por cerca de metade das emissões brutas de gases de efeito estufa do país.
Agora, às vésperas da COP28, o agro decretou que não tem nada a ver com isso. Tem-se ouvido de figuras importantes do setor, dentro e fora do governo, que desmatamento e clima são coisas distintas; e que, se há alguém desmatando no país, esse alguém não é o agronegócio. A historinha é que a agropecuária só participaria do drama do clima global na condição de vítima.
Em 24 de outubro, 20 dias depois de o agro ter exigido – e ganho – sua exclusão do PL do mercado de carbono, o OC publicou um relatório calculando pela primeira vez as emissões totais dos sistemas alimentares do Brasil. A forma de fazer a conta é nova. Como Nassar aponta, ela de fato “rompe a fronteira” dos inventários de emissões ao considerar tudo o que é emitido nas fases de pré-produção agropecuária (mudança de uso da terra e produção de fertilizantes), produção (emissões diretas do rebanho, por exemplo) e pós-produção (transporte de alimentos e uso de energia do varejo, por exemplo). Os autores do SEEG aplicaram no Brasil um método desenvolvido pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).
Embora a conta seja nova, a notícia é velha: o desmatamento responde pelo grosso do 1,8 bilhão de toneladas de CO2 equivalente emitidas pelos sistemas alimentares no Brasil, com 56,3% do total, seguido pelas emissões diretas da agropecuária, com 33,7%, energia, com 5,6%, e resíduos, com 4,2%.
Confrontado com a febre, o presidente da Abiove preferiu atirar no termômetro: Nassar se bate contra a “alocação” das emissões, em especial as de desmatamento, ao setor. Segundo ele, a metodologia de alocação usada pelo OC no SEEG levaria a uma “atribuição exagerada” da responsabilidade das commodities pelo desmatamento. O oposto é verdade: o método da alocação, que parte das emissões totais do país (calculadas pelos seguros métodos de inventários que o SEEG adota rigorosamente) para então atribuí-las a um conjunto específico (no caso, os sistemas alimentares), busca justamente evitar que as emissões sejam superestimadas ou subestimadas.
Um aparte aqui: o peso direto do agro no PIB do Brasil é de cerca de 7%. Só que o setor computa efeitos indiretos, como a venda de máquinas agrícolas, insumos e serviços para chegar ao número mais frequentemente usado de 25% de participação. Isso tem nome: alocação. Aceitar alocações para a composição do PIB do agro, mas rejeitá-las quando o assunto são emissões, tem outro nome: duplo padrão.
O corolário desse raciocínio é que, se não se deve atribuir ao agronegócio as emissões de desmatamento, é porque o agro não desmata. Se isso é verdade, alguém mais está desmatando – a menos que as árvores da Amazônia venham programadas para entrar em apoptose e depois em combustão espontânea. Mas quem seriam os responsáveis? E o que ocorre com essa área convertida?
Utilizando as matrizes de transição do MapBiomas, que olham o que aconteceu com cada quadrado de 30 metros por 30 metros do território brasileiro desde 1985, os autores do SEEG concluíram que, desde 1990, 92% das emissões por desmatamento ocorreram devido à formação de pastagens, e outros 5% à produção de soja. Decerto há muito desmatamento especulativo, feito para tomar posse de terras públicas e não para produzir. Só que o destinatário final da maior parte da área aberta por grileiros é um pecuarista. Não há, portanto, nenhum erro em alocar todas as emissões por mudança de uso da terra, atividade que se beneficia de pelo menos 97% delas, à agropecuária. Ao contrário, é obrigação de quem calcula emissões fazê-lo.
Mas, se o agro não tem nada a ver com quem desmata, fica aqui então um desafio para o setor: aprovar um projeto de lei aumentando a punição aos crimes por desmatamento, ou outro para punir de forma rigorosa e definitiva o crime de grilagem de terras, que afinal tanto lhe prejudica a imagem.
No mundo real, infelizmente, o que se vê é o contrário: representantes do agro no Congresso estão neste momento em campanha para aprovar uma anistia potencialmente eterna à grilagem de terras no país e avançando sobre os direitos e territórios indígenas, estes os verdadeiros guardiões das florestas. Pior ainda, a julgar pela sugestão de André Nassar sobre o mercado de carbono, o setor quer ganhar dinheiro vendendo créditos de carbono, mas não quer reportar e muito menos limitar suas emissões. No sistema de “cap and trade”, o agro quer o “trade”, mas não o “cap”.
A agropecuária brasileira é melhor que isso. É um setor que obteve ganhos imensos de produtividade com uso de tecnologia e que há dez anos pratica o maior programa de agricultura tropical de baixa emissão do mundo, com sequestro líquido de carbono em solos bem manejados (como o SEEG mostra há oito anos). Faria melhor o setor para si, para o país e o planeta se encarasse seus problemas – todos solucionáveis – de frente em vez de tentar se esconder atrás de contorcionismo retórico ou negacionismo.
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