quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Nunca morreram tantos jornalistas num só lugar

Quando, a 2 de Novembro, o jornalista Mohammed Abu Hatab, repórter veterano da Televisão da Palestina, morreu em Gaza, as notícias sobre a sua morte foram confusas.

Salman Al-Bashir, colega da mesma televisão – o canal oficial da Autoridade Palestiniana –, estava em directo quando soube da morte. Ficou muito perturbado, chorou ao vivo e, num gesto que correu o mundo, tirou o capacete da cabeça e despiu o colete antibala com a palavra “PRESS” gravada no peito e nas costas. Atirou tudo para o chão e disse qualquer coisa como: “Isto não serve para nada, não nos protege de nada, vamos ser todos mortos”.

A sua intervenção dava a entender que Abu Hatab morrera “em serviço”, enquanto fazia uma notícia ou uma reportagem. No dia seguinte, o New York Times publicou uma notícia que dizia na “entrada” – frase abaixo do título que antecede o texto – que “Mohammed Abu Hatab é o mais recente jornalista a morrer enquanto cobria a guerra Israel-Hamas”.


Abu Hatab não estava a trabalhar. A própria notícia do New York Times diz que “a Televisão Palestina disse” que Abu Hatab foi morto “em casa por um ataque aéreo israelita”.

Abu Hatab estava em casa. Todas as notícias que li relatam que morreu com 11 membros da sua família, incluindo a mulher, um filho e um irmão. Algumas notícias dizem que fizera uma reportagem no Hospital Nasser, em Khan Yunis, em Gaza, uma hora antes do ataque a sua casa e sugerem que a casa foi um alvo directo de Israel. Há imagens que mostram o pequeno prédio onde Abu Hatab vivia totalmente destruído, ao lado de prédios intactos.

Será difícil saber.

É bem possível que não tenha sido intencional, mas um bombardeamento como tantos outros. Já morreram 15 mil pessoas desde que a guerra começou, alguns são jornalistas, muitos mais têm outras profissões ou são jovens e crianças.

A organização Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, cujo presidente é Richard Falk, professor emérito de Direito Internacional da Universidade de Princeton, diz no entanto que “Israel lançou uma onda de assassinatos contra jornalistas no país, visando deliberadamente profissionais e escritórios de media, para tentar impor um bloqueio real e abrangente dos media em toda a Faixa de Gaza”.

Diz também que “a escalada de Israel contra os jornalistas foi acompanhada pelo incitamento público por parte de ministros e funcionários israelitas, que fizeram afirmações infundadas e ilógicas de que jornalistas tinham conhecimento do ataque de 7 de Outubro no sul de Israel”. Dão como exemplo as declarações do antigo embaixador israelita nas Nações Unidas, Danny Danon, que apelou a que alguns fotojornalistas de Gaza fossem incluídos na lista de participantes na operação de 7 de Outubro e fossem “eliminados”.

Dirá o leitor: a Euro-Mediterranean Human Rights Monitor é pró-Palestina, a sua análise é parcial. É possível.

Mas o caso de um freelancer da agência de notícias Reuters levanta perguntas perturbadoras.

Há dois dias, a Reuters escreveu que “ataques mortais atingiram a casa de um fotógrafo em Gaza, dias depois de um grupo de activistas de defesa dos media israelitas ter questionado a sua cobertura do ataque do Hamas de 7 de Outubro, gerando ameaças de morte contra ele nas redes sociais”.

Diz a Reuters que o fotógrafo Yasser Qudih sobreviveu ao ataque a sua casa na noite de 13 de Novembro, mas que oito familiares morreram. O ataque ocorreu cinco dias depois da publicação de um texto da organização HonestReporting no qual se questiona se Qudih e outros três fotógrafos de Gaza, cujas imagens foram publicadas na Reuters, AP, CNN e New York Times, teriam tido conhecimento prévio do ataque de 7 de Outubro.

A HonestReporting diz ter como missão “combater o preconceito ideológico no jornalismo e nos media com impacto em Israel”.

No dia 9, a Reuters negou as sugestões da HonestReporting de que tinha conhecimento prévio do ataque e disse que o governo israelita lhe exigira explicações.

O HonestReporting disse que não estava a acusar a Reuters de conluio, mas a “levantar questões éticas sobre a cobertura jornalística”.

O facto é que circulou uma fotografia de 7 de Outubro na qual se vêem palestinianos a transportar uma mulher civil israelita, capturada no kibbutz Kfar Azza e que estava ser levada de moto para Gaza. Na imagem, vêem-se dois fotógrafos.

A 8 de Novembro, Eli David, investigador e investidor (e que diz ter uma das 100 contas de Twitter mais influentes do mundo), publicou essa fotografia com setas vermelhas a apontar para esses fotógrafos palestinianos e escreveu no X: “Última hora: AP, CNN, New York Times e Reuters tinham jornalistas ’embedded’ com os terroristas do Hamas no massacre de Outubro.” O post foi visto por dez milhões de pessoas.

No dia 9, o general Benny Gantz, ministro sem pasta no actual governo israelita, escreveu no X que “os jornalistas que sabiam do massacre e que ainda assim optaram por permanecer como espectadores passivos enquanto crianças eram massacradas não são diferentes dos terroristas e devem ser tratados como tal.”

A Reuters respondeu que as fotografias que comprou a Qudih, fotógrafo que estava na fronteira a 7 de Outubro, foram tiradas muito depois de o ataque ter começado, o que destrói o argumento de que a agência ou o fotógrafo tiveram conhecimento prévio do ataque.

Disse a Reuters: “As fotografias publicadas pela Reuters foram tiradas duas horas depois de o Hamas ter disparado contra o sul de Israel e mais de 45 minutos depois de Israel ter dito que homens armados tinham atravessado a fronteira. Os jornalistas da Reuters não estavam no terreno nos locais mencionados no artigo do HonestReporting.” Ou seja, os jornalistas souberam do ataque e foram a correr para a fronteira, que é o que os jornalistas fazem.

Certo é que, dias depois de tudo isto, a casa de Qudih foi bombardeada.

Desde que a guerra Israel-Hamas começou, já houve mais jornalistas e pessoal dos media mortos do que em qualquer outro período semelhante num só conflito, disse o Comité de Protecção dos Jornalistas. Pelo menos desde 1992, quando esta lista começou a ser feita. Hoje, 22 de Novembro, já são 62 mortos, quase todos jornalistas palestinianos. Em 2022, em todo o mundo, morreram 68 jornalistas por serem jornalistas.

Sessenta e dois jornalistas são uma gota nos mais de 15 mil mortos desde o início desta guerra. A vida dos jornalistas não vale mais do que a dos médicos, professores ou sapateiros. E muitos jornalistas não morreram enquanto estavam a trabalhar, não terão morrido por serem jornalistas. A maior parte estava simplesmente em Gaza, em casa, talvez a dormir.

Mas há dois problemas: o primeiro é a nuvem de suspeita sobre a morte de tantos jornalistas em tão pouco tempo. Outro é mais simples: há cada vez menos jornalistas para contar o que se está a passar em Gaza.

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