sábado, 3 de dezembro de 2022

'De que cor é a fome, mãe?'

Li que na grande e rica São Paulo, a maior cidade da América Latina e um estado como toda a Espanha, uma menina do subúrbio perguntou à mãe de que cor é a fome. Ela não perguntou qual era o gosto das dores da fome, ela as conhecia muito bem, mas de que cor. As crianças são tão criativas.

Deve ter sentido o amargor da fome, como sentem hoje milhões de brasileiros , algo que se torna mais agudo na véspera do Natal , para perguntar se, além do gosto amargo, também tem cor.

Essa nova situação paradoxal de um mundo cada vez mais rico e com mais fome por metro quadrado é o que os políticos, todos eles, deveriam estar estudando e resolvendo antes de mais nada.

E é talvez porque a maioria da humanidade, melhor ou pior ainda, continua a comer para sobreviver que não conseguimos compreender a crueldade crua da fome.

Escrevo com conhecimento de causa porque pertenço ao grupo dos que conheceram os golpes da fome. Foi durante a guerra civil espanhola, que foi seguida pela odiosa e dolorosa ditadura de Franco . Sim, então sabíamos o que era a fome, a doçura de um pedaço de pão branco ou preto, trigo ou cevada.

Também a conheci pessoalmente na escola religiosa onde estudei o ensino médio. Éramos jovens e nosso estômago estava sempre reclamando. Na Espanha foram anos de escassez. Muito tempo se passou para mim, mas os sonhos do forno na aldeia da minha infância de onde saíam os pães com cheiro a céu quentes como sóis ainda estão vivos na minha memória.

Na escola davam-nos ao pequeno-almoço café com leite, um pãozinho pontiagudo que acabava com duas dentadas. O que nós inventamos? Corte cada dia os dois picos do pãozinho, guarde-os para ter 14 no final de semana e poder encher a tigela de leite. O triste era que às vezes algum bandido descobria onde eu os guardava e os roubava. Aquele domingo foi duplamente amargo.

Durante o verão, eles nos levaram a alguns acampamentos do exército nos Picos de Urbión, no meio das montanhas. Na nossa idade e andando 20 km todos os dias, nosso apetite era devastador. Foi assim que inventamos tudo. Nos dividimos em grupos para tentar encontrar algo para comer. No meu, alguns de nós íamos pescar trutas com as próprias mãos debaixo das pedras do rio e outros, sobretudo os asturianos, tentavam ordenhar uma vaca. Foi um banquete.

No Natal, às vezes as famílias nos mandavam um tablete de nougat duro. O que fizemos para que durasse mais? Cortamos em pedacinhos e embrulhamos em jornal como bombons para durarem mais. Isso se passou para mim, 75 anos, e ainda me parece agora.


Talvez por pertencer ao grupo dos que acreditam que os tempos passados foram piores, também penso com alguma raiva que hoje não deve faltar comida a ninguém nem Natal sem mimo a uma criança. Estou errado e tenho certeza que neste Natal e neste rico Brasil, milhões de crianças passarão fome novamente.

Ontem, na pequena vila de pescadores, perto do Rio onde moro, presenciei no mercado, na porta de minha casa, uma cena que mesmo que eu vivesse mais 90 anos do que já completei, não conseguiria esquecer. Ela era uma mulher velha, com um rosto magro. Eu estava sozinho. Ela foi comprar bananas. Ela pegou duas, daquelas que são cozidas. Ela foi ao caixa pagar. No caminho, olhou para as moedas em sua mão. E pensou por alguns segundos. Ela se virou e devolveu uma das bananas que havia escolhido. Fiquei tentado a escolher o melhor cacho da mesa do mercado e colocá-lo em sua bolsa. Não o fiz para não a humilhar, mas prometi a mim mesmo que minha primeira coluna seria dedicada ao drama daquela velha que partiu triste com uma única banana na mão.

Em casa, eu não consegui ler os jornais coalhados como sempre com os escândalos de corrupção política enquanto há gente, idosos e crianças que passam fome e até o pão puro, sem nada, tornou-se uma iguaria e um luxo. A raiva subiu aos meus olhos.

Há alguns dias, minha colega Naiara, correspondente deste jornal aqui no Brasil, me perguntou, intrigada, por que em meu recente livro de poemas, Alfabetos Perdidos, dediquei um deles ao “pão”. É que, além das minhas lembranças da fome na infância, ainda tenho a cena vivida aqui em minha casa com um sobrevivente do campo de extermínio nazista de Auschwitz.

Minha esposa preparou uma refeição e fez pão caseiro. Quando o nosso comensal se sentou à mesa, desculpou-se por comer apenas pão e disse-nos que nos anos do inferno em Auschwitz os seus sonhos, os seus desejos mais ardentes, os seus pesadelos, eram um pedaço de pão, duro ou mole, não importava. Era pão. E sim, ele comia apenas pão. Pouco depois soubemos que ele se foi para sempre. Jamais o esquecerei com o pão quente da minha mulher nas mãos comendo-o aos bocadinhos.

Sim, hoje num mundo rico em tecnologia, em milagres da ciência, onde o Homo Sapiens consegue viver cada vez mais e já sonha em conquistar e habitar o cosmos, ainda há crianças sem poder comer no natal e perguntando angelicalmente de que cor é a fome. Isso nos julga e nos condena.

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