sábado, 3 de dezembro de 2022

Desigualdade que vem do berço

O prêmio Nobel de economia Angus Deaton começa seu livro “A Grande Saída” convidando o leitor a entender que, muitas vezes, situações positivas podem gerar desigualdades. Se, entre dois prisioneiros de um campo de concentração, um consegue escapar, isso vai gerar uma desigualdade.

Obviamente, isso não significa que seja ruim que alguém escape daquela situação infernal. É positivo que uma pessoa deixe de ser vítima de uma injustiça. A desigualdade, no caso, reflete que nem todos conseguiram escapar de uma situação ruim.

No livro, Deaton fala de como a Humanidade vem escapando da penúria ao longo dos últimos séculos. Até pouco tempo, quase todos os seres humanos tinham níveis de consumo baixo, acesso muito limitado à saúde e viviam sob governos tirânicos.

Ao longo desses anos, partes do mundo conseguiram escapar desses grilhões. Primeiro veio a revolução sanitária, que reduziu a mortalidade infantil inicialmente no Ocidente, depois no resto do mundo. Depois veio a melhora nas condições materiais. Em 1990 (praticamente anteontem!), 38% do mundo viviam na extrema pobreza. Em 2019, já eram bem menos: 8,4%.


Mas nem todos escaparam. Mesmo em países de renda média, como o Brasil, há partes da população que estão presas a condições prejudiciais. Por aqui, há um fator adicional: aqueles que ficam para trás parecem ter seu destino traçado desde o nascimento.

Um trabalho recente dos economistas Diogo Britto, Alexandre Fonseca, Paolo Pinotti, Breno Sampaio e Lucas Warwar traz informações inéditas sobre mobilidade social no Brasil. Usando dados da Receita Federal, de pesquisas domiciliares e de programas sociais, eles criaram uma nova base de dados de relações entre filhos e pais e a renda de cada um deles.

Como em boa parte do mundo, os filhos de pais ricos também tendem a ser ricos. No Brasil, contudo, a persistência da desigualdade de renda de uma geração para outra é muito maior do que em outros países.

Filhos nascidos em lares que estavam entre os 20% mais pobres só têm 4% de chance de chefiarem famílias que estarão entre as 20% mais ricas. Entre aqueles que nasceram em lares que estão entre os 20% mais ricos, há quase 50% de chance de que eles continuem entre os mais ricos quando adultos.

Em média, cerca de 50% da renda dos brasileiros é determinada pela renda dos pais. Esse percentual é muito maior do que nos Estados Unidos (35%), Canadá (25%) ou países escandinavos (20%), indicando baixa mobilidade social.

A persistência na desigualdade ao longo do tempo é particularmente perversa. Ela indica que mesmo alguém talentoso e esforçado vai ter uma chance muito baixa de reverter seu infortúnio de berço. Se uniformidade social mata os incentivos para a inovação e o esforço, a imobilidade social também o faz.

E quais são as soluções para isso? Obviamente, não há uma resposta simples a essa pergunta. Mas experimentos na educação de primeira infância iluminam alguns possíveis caminhos.

Recentemente, um grupo de pesquisadores que inclui os brasileiros Lycia Lima, Pedro Olinto e Ricardo Paes de Barros analisou os efeitos de uma loteria que deu acesso gratuito a creches para famílias pobres do Rio de Janeiro. Como o benefício era aleatorizado, as diferenças entre os que receberam e não receberam o benefício são causadas pelo acesso a creche — e não como mera correlação.

O estudo mostra que, durante vários anos, as crianças que receberam esse tipo de apoio na primeira infância eram mais altas, mais bem nutridas e tinham melhores índices cognitivos do que as que não receberam. Um efeito importante do programa é o fato de as creches liberarem irmãos, mães e avós do trabalho doméstico — podendo assim trabalhar fora e aumentar a renda da família.

Tal estudo replica no Brasil resultados similares de estudos em países ricos. Você já leu sobre eles nestas páginas (“O Direito de Sonhar”, 29/01/2022). Em comum, eles mostram que intervenções na primeira infância têm impactos substantivos sobre crianças que crescem em lares pobres, amenizando algumas das amarras que as prendem naquela situação.

O Brasil é muito desigual. Mas há algo além: nossa desigualdade é persistente, o que impede que gerações de brasileiros escapem das suas circunstâncias. Se quisermos construir uma sociedade em que o destino de uma criança não esteja sacramentado antes de ela nascer, é prioritário atacar a desigualdade que vem de berço.

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