Obviamente, isso não significa que seja ruim que alguém escape daquela situação infernal. É positivo que uma pessoa deixe de ser vítima de uma injustiça. A desigualdade, no caso, reflete que nem todos conseguiram escapar de uma situação ruim.
No livro, Deaton fala de como a Humanidade vem escapando da penúria ao longo dos últimos séculos. Até pouco tempo, quase todos os seres humanos tinham níveis de consumo baixo, acesso muito limitado à saúde e viviam sob governos tirânicos.
Ao longo desses anos, partes do mundo conseguiram escapar desses grilhões. Primeiro veio a revolução sanitária, que reduziu a mortalidade infantil inicialmente no Ocidente, depois no resto do mundo. Depois veio a melhora nas condições materiais. Em 1990 (praticamente anteontem!), 38% do mundo viviam na extrema pobreza. Em 2019, já eram bem menos: 8,4%.
Mas nem todos escaparam. Mesmo em países de renda média, como o Brasil, há partes da população que estão presas a condições prejudiciais. Por aqui, há um fator adicional: aqueles que ficam para trás parecem ter seu destino traçado desde o nascimento.
Um trabalho recente dos economistas Diogo Britto, Alexandre Fonseca, Paolo Pinotti, Breno Sampaio e Lucas Warwar traz informações inéditas sobre mobilidade social no Brasil. Usando dados da Receita Federal, de pesquisas domiciliares e de programas sociais, eles criaram uma nova base de dados de relações entre filhos e pais e a renda de cada um deles.
Como em boa parte do mundo, os filhos de pais ricos também tendem a ser ricos. No Brasil, contudo, a persistência da desigualdade de renda de uma geração para outra é muito maior do que em outros países.
Filhos nascidos em lares que estavam entre os 20% mais pobres só têm 4% de chance de chefiarem famílias que estarão entre as 20% mais ricas. Entre aqueles que nasceram em lares que estão entre os 20% mais ricos, há quase 50% de chance de que eles continuem entre os mais ricos quando adultos.
Em média, cerca de 50% da renda dos brasileiros é determinada pela renda dos pais. Esse percentual é muito maior do que nos Estados Unidos (35%), Canadá (25%) ou países escandinavos (20%), indicando baixa mobilidade social.
A persistência na desigualdade ao longo do tempo é particularmente perversa. Ela indica que mesmo alguém talentoso e esforçado vai ter uma chance muito baixa de reverter seu infortúnio de berço. Se uniformidade social mata os incentivos para a inovação e o esforço, a imobilidade social também o faz.
E quais são as soluções para isso? Obviamente, não há uma resposta simples a essa pergunta. Mas experimentos na educação de primeira infância iluminam alguns possíveis caminhos.
Recentemente, um grupo de pesquisadores que inclui os brasileiros Lycia Lima, Pedro Olinto e Ricardo Paes de Barros analisou os efeitos de uma loteria que deu acesso gratuito a creches para famílias pobres do Rio de Janeiro. Como o benefício era aleatorizado, as diferenças entre os que receberam e não receberam o benefício são causadas pelo acesso a creche — e não como mera correlação.
O estudo mostra que, durante vários anos, as crianças que receberam esse tipo de apoio na primeira infância eram mais altas, mais bem nutridas e tinham melhores índices cognitivos do que as que não receberam. Um efeito importante do programa é o fato de as creches liberarem irmãos, mães e avós do trabalho doméstico — podendo assim trabalhar fora e aumentar a renda da família.
Tal estudo replica no Brasil resultados similares de estudos em países ricos. Você já leu sobre eles nestas páginas (“O Direito de Sonhar”, 29/01/2022). Em comum, eles mostram que intervenções na primeira infância têm impactos substantivos sobre crianças que crescem em lares pobres, amenizando algumas das amarras que as prendem naquela situação.
O Brasil é muito desigual. Mas há algo além: nossa desigualdade é persistente, o que impede que gerações de brasileiros escapem das suas circunstâncias. Se quisermos construir uma sociedade em que o destino de uma criança não esteja sacramentado antes de ela nascer, é prioritário atacar a desigualdade que vem de berço.
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