O sociólogo Manuel Castells, ministro de Universidades da Espanha — discípulo de Alain Touraine, Michel Foucault e Jürgen Habermas —, destaca que a democracia se constrói em torno de relações de poder social que vão se adaptando à evolução, mas sempre acaba por privilegiar o poder que já está cristalizado nas instituições. E com o poder cristalizado ficando cada vez mais poderoso, mais difícil fica de eliminá-lo ou combatê-lo. Isso acaba por desencorajar a criação de novas representações políticas ao fazer com que o cenário político se mostre cada vez mais dominado por grandes partidos, enraizados há mais tempo.
Partindo dessa premissa, podemos constatar que o tsunami eleitoral de 2018, que levou Bolsonaro ao poder, ao mesmo tempo em que foi resultado do descolamento dos partidos da sociedade, por seu cretinismo parlamentar (que nada mais é do que a defesa dos interesse próprios dos políticos e não das ideias e eleitores que lhes deram origem), representou a derrota dos movimentos cívicos que emergiram da crise do governo Dilma Rousseff em 2013. Esses movimentos não conseguiram dar origem a uma alternativa de poder de caráter liberal. Esvaziados, sua base social foi capturada pelo bolsonarismo, um movimento assumidamente reacionário, cuja atuação reproduz a velha extrema-direita da crise política e da radicalização dos anos 1930.
Agora estamos diante de um novo ciclo, em que o presidente Jair Bolsonaro, líder carismático desses movimentos, perdeu as eleições para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fundador e líder do maior partido de origem operária da história do país, num processo de polarização esquerda versus direita que precisa ser ultrapassado, mas se retroalimenta. Entretanto, há uma diferença fundamental entre Lula e Bolsonaro: o primeiro tem um partido com experiência política e eleitoral, e o segundo, não; lidera uma militância fanatizada e organizada à margem dos partidos que lhe deram governabilidade.
Diria Castells, quem paga esse pato é a sociedade, que se vê longe do sistema político, ao mesmo tempo em que o processo de renovação e evolução política do país fica tolhido pelos partidos dominantes. Mas não sejamos maniqueístas, o outro lado dessa moeda é o fortalecimento das instituições políticas, ainda que por uma "partidocracia". Assim, a virulência verbal e vandalismo dos bolsonaristas-raiz são preocupantes, desnudam a mentalidade fascista de suas lideranças, porém, ao mesmo tempo, revelam um certo desespero diante da força das instituições e do curso da democracia.
A bagunça ocorrida em Brasília no dia da diplomação de Lula estava escrita nas estrelas. Foi orquestrada e mostra as intenções dos grupos golpistas que permanecem à porta dos quartéis, com propósito de impedir a posse do presidente eleito. Mas esse tipo de ação serve também para isolá-los e pôr uma saia justa nos aliados de Bolsonaro que se passam por liberais e flertam com o autoritarismo, bem como as autoridades de segurança cujos serviços de informação sabem o que está se passando. Como um novo ciclo que se abre, esses grupos de extrema-direita, com sinal trocado, se deparam com as mesmas dificuldades dos movimentos cívicos que não conseguiram se integrar ao processo político institucional e se esvaziaram como força eleitoral. A chave do que está ocorrendo é o Centrão.
O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, a propósito do momento em que estamos vivendo, numa conversa política entre amigos na segunda-feira, fez uma observação fundamental: precisamos separar a extrema-direita bolsonarista do Centrão ao analisar a força de Bolsonaro. Segundo ele, a sobrevivência dos políticos do Centrão depende da relação com o governo, e não da liderança de Bolsonaro. Por isso mesmo, a construção da governabilidade de Lula passa pela institucionalidade da política, e não pelo confronto nas ruas. Esse seria o jogo dos violentos. Complemento: quando Churchill disse que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos”, estava se referindo à capacidade de a democracia liberal do Ocidente sobreviver às crises que ela própria engendra. Foi mais ou menos o que ouvi de um general no Comando Militar do Planalto às vésperas do 7 de setembro do ano passado: “A democracia é barulhenta, mas tem instituições fortes”.
Em tempo: o presidente Jair Bolsonaro está chocando o ovo de uma serpente natimorta. A correlação de forças políticas, com a derrota eleitoral, está se alterando, porque o governo é a forma mais concentrada de poder e o aparelho burocrático-administrativo já gravita em torno do novo presidente da República e das forças que o apoiam. Os bolsões de resistência no Estado são localizados e estão sendo desnudados, principalmente na área da segurança pública. O que houve em Brasília foi omissão e conivência com os baderneiros, mesmo assim, diante da escalada, chegou uma hora em que a repressão aos manifestantes teve que ser adotada. Não houve prisões de vândalos na segunda-feira, mas serão inevitáveis.
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