domingo, 5 de setembro de 2021

Dia de qual pátria?

“Uma pessoa sem memória ou é criança ou é amnésica. Um país sem memória não é criança nem é amnésico — nem sequer país é.” A citação não é de nenhum sábio da Antiguidade. Saiu da verve sempre inteligente de Mary Astor, a atriz de Hollywood que imortalizou “O falcão maltês” nos anos 1930. Quando somada a outra de autoria incerta, mas falsamente atribuída a Platão — “pode-se facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro: a verdadeira tragédia da vida é quando homens têm medo da luz”—, temos o Dia da Pátria planejado para esta terça -feira.

O Brasil que Jair Bolsonaro exibirá no 7 de Setembro deve marchar e incensar o “mito”, não honrar a memória do país. Para tanto, deve esquecer as nações indígenas que em 2021 ainda precisam bater às portas da História e do Supremo Tribunal Federal para não ser esquecidas. Tampouco se verá, na marcha, referência aos mais de 580 mil brasileiros que morreram de Covid-19 sem uma só palavra de compaixão do presidente. A ideia é deletar, esquecer e tentar reescrever o que é inconveniente na História do Brasil de hoje e de outrora.

O presidente também se enquadra na categoria “homem com medo da luz”, mas não só da luz do conhecimento. O medo maior é do clarão de investigações que mapeia a holding do clã Bolsonaro para surrupiar o Erário através da prática das “rachadinhas”, nome inocente do crime de recolhimento de parte dos salários de assessores parlamentares contratados para esse fim. De pai para filhos, de filho para mãe, o cipoal de práticas subterrâneas suspeitas a cada dia adquire mais visibilidade.


Ainda nesta semana, em entrevista a Guilherme Amado e equipe do site Metrópoles, mais um ex-empregado da família veio a público com denúncias da rachadinha atribuída a Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro e mãe de Jair Renan, o filho Zero Quatro do presidente. Os detalhes narrados por Marcelo Luiz Nogueira dos Santos são sórdidos e vingativos, além de não comprovados. Mas, ao não pedir anonimato e deixar-se fotografar para a entrevista, o denunciante indica sentir-se seguro, talvez pelo que tenha deixado de falar. De todo modo, em esfera mais sólida, as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro, com foco em Carlos e Flávio, e as incursões da CPI da Covid em Brasília, que sem querer esbarrou numa liaison talvez dangereuse entre o lobista-mor de Brasília Marconny Faria e o Zero Quatro, prosseguem seu curso.

É essa a tormenta bíblica de Jair Bolsonaro, com outros tantos fios desencapados a apontar para o presidente. O 7 de Setembro nos moldes planejados lhe é necessário para manter acesa a ideia de que “os nossos”, como diz o general Augusto Heleno, são o Brasil. Não são, nem à força. O presidente pode relinchar patriotismo em Uberlândia, decretar a supremacia de fuzis sobre o feijão, mas nada além de um confronto aberto consegue apaziguá-lo. Sua linha de atuação segue o catecismo de mandantes a perigo: levar seus seguidores a também optar pelo desconhecimento. É a tática do nada perguntar, apenas afirmar. No caso da pandemia, são as perguntas que o presidente não fez que determinaram a mortandade de brasileiros indefesos. Só que o “privilégio” de não fazer perguntas é reservado àqueles que disso se beneficiam, aponta a cientista social britânica Jana Bacevic. “Para os mais vulneráveis e explorados”, diz ela, “os efeitos da Covid não são um tema evitável, e sim uma realidade inescapável”.

Com o mundo em emergência de sustentabilidade da vida, o aquecimento global a gritar na nossa cara, o milhão de espécies animais a perigo, a contaminação de águas e solos, o êxodo forçado de massas à deriva, a insegurança alimentar e as desigualdades obscenas da humanidade — nada disso parece frequentar os medos de Jair Bolsonaro. Seu foco imediato é o 7 de Setembro, fora ou dentro das quatro linhas da Constituição. Por via das dúvidas, o Departamento de Estado enviou um alerta a todos os cidadãos americanos residentes no Brasil para que mantenham low profile na terça-feira, evitem as áreas de manifestações e mantenham cautela se estiverem inadvertidamente próximos a protestos —“mesmo manifestações planejadas para ser pacíficas podem virar confrontos”.

Qualquer pessoa, ensina um grande poeta do século passado, pode aprender a pensar, a acreditar, a saber; mas nenhum ser humano pode ser ensinado a sentir. Por quê? Porque sempre que você pensa, ou crê, ou aprende algo, você é a soma de muitas outras pessoas; no momento de sentir, você é apenas quem você é. Será que Jair Bolsonaro sabe quem é?

Nenhum comentário:

Postar um comentário