Um outro ensaio de Tinhorão, “Fado — Dança do Brasil, cantar de Lisboa”, lançado em 1984, em Lisboa, também pela Editorial Caminho, provocou particular polêmica. Entrevistei-o a essa altura para o diário português Público. A tese, defendida por Tinhorão, de que o fado lisboeta tem origem em ritmos africanos do Brasil irritou fadistas e investigadores portugueses. Receei que a reação dos portugueses o aborrecesse ou assustasse. Foi o contrário. Nunca mais esqueci a genuína alegria com que acolheu a polêmica. A atitude dele foi para mim uma lição de vida.
Apesar de só ter conversado duas ou três vezes com Tinhorão, a notícia da sua morte, na última terça-feira, deixou-me triste, como se tivesse perdido um amigo — ou um mestre.
Tinhorão possuía duas virtudes que raramente se apresentam juntas num mesmo espírito: a lucidez e a coragem. Era capaz de pensar diferente, e tinha a coragem de expressar esse pensamento, contra a corrente dominante, qualquer que ela fosse. Pude observar como, ao longo das décadas, no Brasil, foi-se erguendo em torno dele um ódio respeitoso, quase consensual. Talvez não ódio, mas irritação — uma coceira na alma, que levava as pessoas a se confrontarem com as suas certezas; que as levava a pensar, buscando argumentos capazes de contrariar as severas opiniões de Tinhorão.
Pessoas assim são raras. Pessoas assim fazem imensa falta, em particular nos dias que correm, em que a inteligência tantas vezes hesita e soçobra — por falta de coragem — diante da estupidez triunfante. Sim, precisamos de alguém capaz de colocar em causa aquilo que nos habituamos a amar e a respeitar, muitas vezes sem jamais termos refletido sobre as razões profundas dessa admiração e desse amor.
O verdadeiro iconoclasta não é o que derruba estátuas. É o que se esforça por derrubar o pensamento que as levantou. José Ramos Tinhorão era um verdadeiro iconoclasta — tendo ou não tendo razão.
As mesmas pessoas que há 37 anos tanto se irritaram com Tinhorão ao lerem “Fado — Dança do Brasil, cantar de Lisboa”, tendem hoje a defender o livro. “Os negros em Portugal”, que em 1998 já parecia tão necessário, é agora imprescindível em todos os debates sobre as novas formas de se ser português. Enquanto no Brasil continua polêmico, em Portugal José Ramos Tinhorão corre o risco de se tornar uma sólida unanimidade. Não sei se ele ficaria feliz com isso.
As mesmas pessoas que há 37 anos tanto se irritaram com Tinhorão ao lerem “Fado — Dança do Brasil, cantar de Lisboa”, tendem hoje a defender o livro. “Os negros em Portugal”, que em 1998 já parecia tão necessário, é agora imprescindível em todos os debates sobre as novas formas de se ser português. Enquanto no Brasil continua polêmico, em Portugal José Ramos Tinhorão corre o risco de se tornar uma sólida unanimidade. Não sei se ele ficaria feliz com isso.
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