O artigo 36 da Lei 9.504/97, que impede a propaganda antecipada, foi sendo afrouxado ao longo dos anos, chegando-se a um entendimento bambo de que a única proibição seria a de “pedir voto”. Um absurdo que fere a premissa que inspirou a lei: a isonomia entre os pretendentes. Especialmente se um deles é presidente da República, tem o aparato público à sua mercê e seus deslocamentos custeados pelos impostos dos cidadãos.
Bolsonaro não é o primeiro a transformar o cargo em palanque. Muitos o fizeram e ainda o fazem nos estados e prefeituras. Lula praticamente não desceu dele nos oito anos de Presidência. Dilma, mesmo tendo embocadura frágil, tentou o mesmo. Mas ambos parecem aprendizes diante dos abusos do capitão.
A desculpa, não raro esfarrapada, é da participação em eventos de interesse público. Mas não há o que justifique mobilizar equipe precursora e aparato de segurança para ir, por exemplo, a um culto evangélico em Anápolis. Muito menos para as motocadas de fim de semana no Rio de Janeiro e em São Paulo que, somadas, custaram R$ 1,7 milhão aos cofres públicos, só para garantir a segurança do presidente.
Em nome do quê? Pode o presidente do país, que em tese preside a todos, se dedicar a eventos exclusivos para seus apoiadores, recheados de bandeiras alusivas a 2022 e com palanque “improvisado” ao final?
No caso das motociatas, cuja motivação é escancaradamente eleitoral – só o comandante do Exército fingiu não ver ao aceitar as desculpas do ex-ministro Eduardo Pazuello de que não era evento político porque o presidente não tem partido -, Bolsonaro teve o cuidado de não incluí-las em sua agenda oficial. Mas os custos foram pagos pelo país, a maior parte por fluminenses e paulistas. Mais: fotos e mentiras das motocadas – a maior do mundo, Guinness e outras baboseiras do gênero – foram inseridas em canais do presidente nas redes sociais.
Na sexta-feira, o abuso alcançou mais uma vez a instituição Presidência da República, com a distribuição oficial de fotos em que Bolsonaro, durante evento em Marabá, mostra ao público uma camiseta alusiva a 2022, afrontando o princípio da impessoalidade previsto na Constituição. A peça de campanha foi entregue a ele pelo presidente da Caixa, Pedro Guimarães, como mimo de um grupo de apoiadores.
Durante a pandemia, de março de 2020 para cá, as viagens de Bolsonaro custaram R$ 18,4 milhões, R$ 16,6 milhões em agendas com aglomerações, muitas delas encomendadas, com ônibus levando “apoiadores” para as recepções. Neste ano, ele visitou 29 cidades, com peso no Norte e Nordeste, regiões que quer conquistar. Nos palanques, repete a ladainha contra o lockdown que na verdade nunca existiu no Brasil, empenhando-se na luta contra o distanciamento social e o uso de máscara, pregando a cloroquina. Em tom efusivo, ergue o braço e fecha o punho, agradece a Deus e, em pausa ensaiada, espera os gritos de “mito”. Campanha ilegal praticada semanalmente. E impune.
Uma impunidade que pode custar caro à democracia. Não só pela vantagem diante de outros pretendentes, mas pela diabólica mensagem que tem repetido contra a legitimidade das eleições, colocando em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas que há 25 anos funcionam no país – inclusive para elegê-lo. Sem apresentar provas que ele diz ter mas nunca mostrou, insiste na tese de fraude. Pior: instado pelo presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, a apresentar qualquer indício, ficou mudo. Mas a direção da Polícia Federal, na qual Bolsonaro finalmente conseguiu intervir, rapidamente se ajoelhou, disparando comunicados para as 27 regionais na tentativa enlouquecida de dar lastro às acusações inconsequentes e criminosas do chefe.
Nos palanques de Bolsonaro veem-se crimes em série: o incentivo a práticas em favor do vírus que já matou mais de meio milhão de brasileiros, o uso do cargo para autopromoção, a ilegalidade da campanha antecipada e a insistente agressão à lisura das urnas. Urge impedi-lo.
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