“O verão parece agora um inverno perpétuo”, escreveu a romancista portuguesa Patrícia Reis numa crônica recente. Venho escutando muitos comentários semelhantes. As pessoas sentem-se presas numa espécie de armadilha temporal. O verão europeu parece um inverno perpétuo, apesar do sol que ocupa todo o céu, e do calor violento, e das esplanadas que se desdobram ociosas junto ao rio. O verão europeu parece um inverno perpétuo porque não há quase ninguém nas ruas, não há risos nem festas, nem amigos que se abraçam, trocando insultos fraternais e fortes tapas nas costas. Não há casais se beijando nos bancos dos jardins. Não há casais se beijando. Aliás: não há beijos!
Pela primeira vez na vida sinto verdadeira falta de alguém que me abrace. Tento roubar abraços aos conhecidos (e até a alguns desconhecidos) que encontro na rua. A vasta maioria esquiva-se com horror: “Cuidado, olha o vírus!”
Odeio aqueles que se aproximam com o cotovelo em riste. A pior invenção destes dias é a cotovelada.
Não falta muito para que os assaltantes, ao invés de mostrarem uma faca, se aproximem das vítimas fazendo boquinha: ]
— Me passa a carteira, otário, ou te dou um beijo.
No estado em que me encontro arriscaria o beijo. Até trocaria a carteira por um beijo.
Receio que quando finalmente for descoberta uma vacina contra o covid-19, já se terá instalado em todas as grandes cidades do planeta uma epidemia de agorafobia. Muitas pessoas recusarão sair de casa, aterrorizadas com os perigos inumeráveis do espaço exterior. Outras tantas não sairão por já não caberem nas portas. Ou talvez nessa altura as casas já nem tenham portas.
Faz uma semana assisti a um show de Yamandu Costa, que se mudou para Lisboa pouco antes do fim do mundo, e aproveitou o período de confinamento para compor novas canções. O músico começou por se queixar de que engordara muito no confinamento, e mal conseguia cruzar as pernas. Terminou o show muito mais leve. Ele e nós.
“O Yamandu tem o instrumento diretamente ligado ao cérebro” — disse-me um amigo, também ele músico. Concordo. Yamandu e o violão são um mesmo organismo musical, que se move no palco como se tivesse inúmeros braços, fazendo com que a luz cresça ou se apague em harmonia com o seu próprio coração.
Compreendi, ouvindo o violonista gaúcho, que se não for através da música, da literatura, do cinema, das artes plásticas, nunca conseguiremos sair do confinamento espiritual que o isolamento físico tende a impor. A música abre portas que nem sabíamos que estavam lá. A arte nos ensinará a romper com este inverno perpétuo, e a avançar para o futuro inevitável, qualquer que ele seja, iluminando e inventando caminhos.
Reaprenderemos a beijar-nos através da arte — ou nunca mais nos beijaremos.
José Eduardo Agualusa
Reaprenderemos a beijar-nos através da arte — ou nunca mais nos beijaremos.
José Eduardo Agualusa
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