terça-feira, 16 de junho de 2020

Os dentes afiados da realidade

A semana passada houve certa comoção em Espanha e em Portugal, com a notícia de que um crocodilo do Nilo, um animal perigoso, que pode crescer até alcançar os seis metros, fora avistado no Rio Tejo. Afinal, era uma simples lontra.

Isto das pessoas olharem para uma lontra e verem um crocodilo, parece-me uma boa ilustração dos tempos que correm.

Também acontece o inverso: onde está um crocodilo, há quem insista em ver uma lontra. É o que se passa com o presidente Jair Bolsonaro, em relação ao número de mortes resultantes da epidemia de Covid-19. “Tem um monte de crocodilos por aí comendo gente”, alertam os especialistas. Bolsonaro encolhe os ombros flácidos e grita: “São lontras, p****! Duas ou três lontrinhas de merda! Querem f**** com minha família?!” — e nessa mesma tarde emite um decreto-lei equiparando os crocodilos a lontras. Por via das dúvidas, determina também que leões, panteras, jaguares, ursos e outros animais perigosos passem a ser considerados lontras.

— São todos lontras, p****! — Explica aos assessores, perplexos (aqueles que ainda têm a capacidade de se perplexizar). — Todos os f***** da p*** desses crocodilos do c****** são a partir de agora lontras fofinhas. 



No dia seguinte um general entra a medo no gabinete do Presidente da República para relatar que as lontras fofinhas andam comendo muita gente.

— Que comendo o quê, c******! — Irrita-se sua excelência. — Elas andam comendo é o c* da senhora sua mãe.

Para acabar de vez com as fake news, o presidente Jair Bolsonaro emite então um decreto-lei, determinando que as pessoas comidas por lontras fofinhas não podem mais ser consideradas pessoas, mas peixes — afinal, lontras comem peixes.

Durante alguns dias a situação parece acalmar. Os jornais destacam a infestação de lontras em todos os estados do país, e a quantidade impressionante de peixe que as mesmas andam devorando, mas essa questão deixou de ser do domínio da política. Como o Presidente da República faz questão de explicar a um repórter particularmente perplexo:

— Lontras comem peixes, é da ordem natural dessa p**** toda: a vida! Quando os peixes começarem a comer as lontras, aí, sim, me avisa. Entretanto cala a boca, comunista de m****!

Chegará a noite, em que ao entrar nos seus aposentos para repousar das inumeráveis fadigas do poder, o Presidente da República encontrará um crocodilo estendido na sua cama, de boca aberta. Há de ser um crocodilo enorme, bem nutrido, sólido como um inselberg.

— Olha a p**** da lontra! — Dirá Jair sacando do revólver. — Morre, comunista, morre!

E pum! Pum! Pum!

Acontece que a realidade tem o couro duro e os dentes aguçados. Assim, acabará devorando o Presidente da República, com todas as suas insígnias e medalhas, os seus palavrões e a sua persistente fixação anal.

— Os comunistas andam criando lontras à prova de bala. — Dirá Bolsonaro ao desembarcar no Inferno, diante de um Satanás perplexo e visivelmente assustado. — Mas pelo menos voltei para casa. Eta, rapaz, que calorzinho bom!…

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