De fato, o direito de ir e vir está entre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros, conforme a Constituição. No entanto, diferentemente do presidente da República, a maioria dos cidadãos está cumprindo as determinações dos governos locais, baseadas em consenso médico e científico, para que permaneça em casa e de lá só saia em caso de necessidade. Ou seja, milhões de cidadãos aceitaram um limite temporário a seu direito constitucional de ir e vir em nome da preservação de um precioso bem coletivo, isto é, a saúde pública.
Essa é a essência da ideia de república, em que o desejo pessoal de cada indivíduo, por mais legítimo que seja, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, expresso nas leis pactuadas por políticos democraticamente eleitos. Para que a república se realize plenamente, portanto, é preciso que seus cidadãos desenvolvam consciência cívica, isto é, tenham noção não somente de seus direitos, mas também, e sobretudo, de seus deveres.
Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum. Ao insistir na “volta à normalidade” muito antes do que a prudência recomenda, fazendo demagogia barata à custa da morte de milhares de compatriotas, o presidente Bolsonaro manda às favas seu dever irrenunciável de liderar os esforços para proteger a saúde da população diante da ameaça real da pandemia. Pior: inspira seus mais fanáticos seguidores a fazer campanha contra as determinações dos governantes estaduais e municipais destinadas a forçar o isolamento social.
Assim, não se trata somente de uma divergência em relação à melhor forma de enfrentar a pandemia; trata-se de uma verdadeira sabotagem aos esforços do Ministério da Saúde e de governadores e prefeitos para que o sistema hospitalar tenha condições de atender o máximo possível de doentes, poupando os médicos da terrível tarefa de ter que escolher quem viverá e quem morrerá.
Quando Bolsonaro, na condição de presidente da República, passeia por Brasília, confraterniza com simpatizantes e diz, no seu idioma peculiar, que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, estimula muitos brasileiros a imaginar que a crise esteja perto do fim ou que talvez não tenha a gravidade que as autoridades sanitárias – a começar pelo Ministério da Saúde – apregoam. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, queixou-se do comportamento do presidente em entrevista ao Fantástico. Ao defender um discurso “unificado” no governo, baseado na ciência e no bom senso, o ministro Mandetta disse que hoje o brasileiro “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.
Para os bolsonaristas radicais e o próprio Bolsonaro, contudo, não há dubiedade alguma. Não existe bem comum a ser preservado. Só existem os interesses particulares de Bolsonaro e de seus fanáticos seguidores, incapazes de aceitar os limites republicanos para suas vontades. Não por coincidência, são esses que vivem a vituperar contra as instituições republicanas, justamente aquelas que, felizmente, impedem Bolsonaro de realizar plenamente seu projeto de poder.
Afortunadamente, como mostrou um estudo de cientistas políticos divulgado pelo Estado, a maioria dos brasileiros – e dos eleitores de Bolsonaro – é favorável ao isolamento social pelo tempo que for necessário. Ou seja, o bolsonarismo antirrepublicano é minoritário mesmo entre aqueles que um dia votaram no presidente. Na hora da crise, a consciência cívica afinal parece falar mais alto – e as autoridades farão bem se ignorarem o alarido dos que só pensam em si mesmos.
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