segunda-feira, 27 de abril de 2020

O 'novo normal'

Nesses tempos de medo e depressão, chovem platitudes e truísmo de profetas, videntes e assemelhados que se multiplicam: “depois da pandemia, o mundo será mais solidário”, “veremos avanços nas áreas das ciências”, “os países serão menos globalistas e mais protecionistas”, etc.

A ciência política não escapa desse vislumbre do amanhã, razão pela qual também me inclino a fazer, vez ou outra, exercícios de futurologia. Em quase todas as projeções prega-se o advir de um mundo diferente, mais solidário, hipótese plausível ante a constatação de que a catástrofe de uma Nação, a partir de um vírus, atinge a todas. A busca pela extinção de pandemias vira missão de todos.


Hoje, tento enveredar nessa trilha: como seria esse “novo normal” com mudanças de padrões, valores, atitudes, o mapa do cotidiano pós-crise? Antes, uma apreciação sobre a paisagem social em que se abrigou o Covid-19. Uma sociedade plena de desigualdades, diferenças culturais, modos de vida, democracias vigorosas e outras nem tanto, conglomerados produtivos e competitivos, uma infinidade de micro e pequenos negócios, desemprego em massa, debilidade na defesa da saúde, acúmulo de riquezas, extrema miséria e fome.

A inferência emerge: o impacto difere em núcleos, grupamentos profissionais e classes sociais. Uns sofrem mais que outros. Mas um fio liga todos os seres humanos: o vírus não distingue ricos e pobres, maiores e pequenos. Só um grupo – os idosos – está mais arriscado.

Dito isto, fica patente: como é possível um micro-organismo desfazer de repente coisas, projetos, empreendimentos e tantos esforços, alguns produto de toda uma vida? É como se um tsunami inundasse tudo o que encontra pela frente: pessoas, construções, empreendimentos. Muitos não se salvam, mesmo em hospitais, enquanto outros, com rendas e negócios arrebentados, terão de recomeçar a vida.

A tragédia deixará marcas profundas, até naqueles com os mais profundos sentimentos de vivência na dor e no desespero. Haverá um olhar mais humano para as tragédias pela ideia de que o sofrimento pode baixar em cada um. Mas a catástrofe escancara a banalização do perigo na corrente do medo e da morte, duas sombras destes tempos.

A morte mora perto, gritada em alto e bom som: 20 mil aqui, 50 mil acolá, 100 mil mais adiante. Virou número. Antes, exclamava-se : “fulano morreu”, seguida de “não diga? Quando? Por quê?” Hoje, caminhões levam corpos mortos para covas coletivas.

Tudo aprofunda nossas feridas. Certa amargura em nossos corações, ao lado da descrença nos padrões da velha política. Como a política entra aqui? Ora, pelo descalabro com que a crise foi tratada por alguns governantes. Pela falta de equipamentos básicos e ineficiência dos serviços públicos, apesar do reconhecimento do heroísmo dos profissionais da saúde.

A sensação é a de que o Senhor Imponderável, que nos visitava em alguns períodos, doravante será mais frequente, o que pode nos tornar um povo mais medroso, mais pessimista. A bem da verdade, eis um contraponto: “quem venceu esse demônio invisível, terá condição de vencer outros que nos atacarem”.

Amém.
Gaudêncio Torquato



Gaudêncio Torquato

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