Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.
Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.
Aqui não é Equador, mas em São Paulo também se morre em casa por covid-19 |
Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.
Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.
Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso, muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma grotesca, em Guayaquil.
Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.
A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.
Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.
Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação. Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária contra a democracia.
Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a mesma coisa.
Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da sociedade. É inconstitucional.
Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O que é no fundo um crime de responsabilidade.
Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não amarelar diante da pressão de Bolsonaro.
É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de tragédia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário