Vale recordar que a desigualdade social no Brasil é estrutural. Lembremos que, em 1974, ao criticar as políticas praticadas pela ditadura militar, o economista Edmar Bacha se referia à “Belíndia” como um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia. Tal desigualdade brasileira, estabilizada em nível tão alto, se explica pela alta e histórica concentração de riqueza, especialmente do patrimônio imobiliário, pela falta de um imposto mais taxativo para herança, especificamente a da propriedade de terra rural que é extremamente concentrada.
No início do novo milênio, milhões de brasileiros conseguiram se ver livres da fome e da pobreza extrema - em menos de 10 anos. Isso só foi possível graças à implementação de uma política de segurança alimentar e programas de transferência de renda - aliados à iniciativas de fortalecimento da agricultura familiar, de acesso à alimentos e de articulação e mobilização social - a partir do primeiro governo Lula da Silva.
Infelizmente, a partir da década passada, com o acirramento da crise econômica e a desaceleração dos investimentos sociais, a pobreza no Brasil voltou a ter aumento significativo. Segundo relatório do Banco Mundial do ano passado, quase 21% da população brasileira vivia em situação de pobreza entre 2014 e 2017, contra 17,9% daqueles registrados em 2014. No mais, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad) do IBGE, a desigualdade dos rendimentos autodeclarados entre 2012 e 2018 cresceu significativamente a partir de 2016 até 2018.
O contínuo crescimento do desemprego e a redução das transferências de renda a partir de 2015 acarretaram também o empobrecimento da classe média, incluindo a parcela significativa de pessoas que haviam ascendido socialmente durante os dois governos do ex-presidente Lula, como mostrou o Panorama Econômico da Cepal de 2019. Agora, a necessidade emergencial de se implementar programas de renda para milhões de brasileiros durante três meses em meio à epidemia apenas expõe a frágil política de empregos no Brasil, que desprezou a geração de postos de trabalho com carteira assinada e com direitos mais estáveis.
A desigualdade em tempos de covid-19 também se reflete na própria exposição à doença. De acordo com o estudo “Covid-19 e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”, de Luiza Pires, Laura Carvalho e Laura Xavier, “a incidência de comorbidades - doenças crônicas associadas aos casos mais graves da covid-19 - é muito maior entre os brasileiros que só frequentaram o ensino fundamental do que nos demais grupos: 42%, ante 33% na média da população. Tais achados estão em linha com estudos anteriores, que encontraram, por exemplo, uma maior incidência de diabetes entre os mais pobres no Brasil e no mundo”.
Como se sabe, a diabetes, além da hipertensão e das doenças do coração, é uma das principais consequências da obesidade para a saúde. E a obesidade, assim como a fome, são faces da mesma moeda: a falta de renda para se ter acesso a uma alimentação adequada, saudável e de qualidade de forma constante. Segundo dados de 2018 do Ministério da Saúde, 1 em cada 5 brasileiros é obeso, sendo 55% homens e 45% mulheres.
Fato é que a covid-19 escancarou a negligência dos últimos governos brasileiros em combater nossa endêmica desigualdade. E isso tem relação íntima com a desidratação da coordenação das políticas de segurança alimentar, exemplificadas pela dissolução do Consea, pelo enxugamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pela ameaça de privatizar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Esse desmonte já vinha se refletindo num aumento da insegurança alimentar da população mais carente, principalmente no Norte e Nordeste, mas a pandemia possivelmente tornará todas as regiões brasileiras mais vulneráveis à fome.
Há, ainda, dimensões significativas e ainda pouco ou mal equacionadas. A covid-19 expõe uma crescente dificuldade de os agricultores familiares entregarem seus produtos. Há um corte nos canais de abastecimento dos produtos frescos, pois feiras livres e mercados diretos foram reduzidos em meio ao controle social. Já há relatos de agricultores sendo obrigados a desperdiçar frutas, legumes e verduras, sem contar outros alimentos perecíveis, como o leite. Sem apoio para o escoamento, podemos testemunhar uma total desarticulação da pequena produção familiar, o que é muito preocupante: são eles que provêm grande parte dos alimentos que consumimos nas cidades.
E o que fazer para se evitar isso?
O mais importante é combater e proibir a especulação no preço dos produtos alimentícios. Temos de evitar o pânico generalizado das pessoas que vão às compras: elas não podem formar estoques de comida, como fizeram com as máscaras e o álcool-gel, senão o sistema de fornecimento de alimentos não vai resistir. Precisamos de um controle da especulação por meio de organismos de defesa do consumidor, de fiscalização de preços.
Já está ocorrendo algo do gênero com o feijão. Estamos em plena safra e o preço disparou, não há nenhuma razão para tal. O governo tomou uma medida importante nessa linha em relação aos produtos farmacêuticos. Deveria agir da mesma forma em relação aos produtos da cesta básica. Não se trata de congelamento de preços, mas de acompanhar, fiscalizar, inspecionar.
Também é fundamental fazer da cidade o centro da política de segurança alimentar nessa pandemia. Temos de fortalecer ações em nível local: é ali que as pessoas estão confinadas, onde moram e onde têm de comer. Há uma série de medidas e programas específicos para fortalecer seu papel no abastecimento alimentar, e elas têm de ser colocadas em prática.
José Graziano da Silva
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