Ao fim do conflito, um esforço internacional se concretizou na criação de uma estrutura que tentaria impedir que aquela tragédia voltasse a ocorrer. O projeto ganhou sede em Genebra, recursos e milhares de horas de reuniões. Mas a Liga das Nações fracassaria alguns anos depois.
Um outro fenômeno ainda mais revelador, porém, foi notado nos anos que se seguiram ao fim do conflito. Cientistas de diversas áreas, profundamente machucados pela perda de alguns ou de todos os seus filhos nas trincheiras, passaram a recorrer a médiuns para que pudessem entrar em contato com os mortos.
Desesperados, sem razão para viver ou acreditar, muitas daquelas mentes optaram por colocar a ciência de lado e simplesmente acreditar que poderiam falar com seus filhos.
A história comovente é contada por Jay Winter, em seu livro Sites of Memory, Sites of Mourning. Feridos em suas almas, alguns deles deixaram suas convicções científicas na busca incerta por uma solução para sua dor.
Diante de um mundo repleto de incertezas e do questionamento constante da suposta normalidade, não é de se estranhar que aqueles desconfortáveis com o aparente mal-estar saiam em busca de promessas, certezas e de garantias, ainda que fabricadas e mentirosas. E nada mais confortável do que ler apenas o que queremos acreditar. Sem contraditório, sem desconstrução.
Minada profundamente em seu orgulho, com um exército de desempregados, corrupção, 60 mil assassinatos e descobrindo que não existe um atalho para o desenvolvimento, uma parte da sociedade brasileira optou por apenas consumir o que possa confirmar as teses sobre as quais está construída. Infelizmente, muitas delas são racistas e autoritárias.
E um grupo no poder descobriu rapidamente que, com atalhos intelectuais, poderia sequestrar essa massa a seu favor e operar em um terreno fértil.
A desinformação não é uma novidade de nossa era. Governos mantiveram por décadas operações de enormes proporções para censurar e manipular a opinião pública. Desta vez, seus artífices possuíam um enorme arsenal tecnológico, com um poder inimaginável há apenas poucos anos.
Assim, nesse contexto, prosperaram pseudonotícias como a do "Kit Gay", a ameaça comunista iminente, a tese de que os termômetros estão nos locais errados, o poder ilimitado do Foro de São Paulo, o questionamento do formato do planeta e mesmo ideias conspiratórias de um astrólogo de rede social. A última dessas peças de desinformação foi transmita em rede nacional e dentro do próprio parlamento quando um blogueiro citou um suposto esquema de troca de armas nucleares entre Brasil e Cuba.
Sobre a enxurrada de elementos tóxicos, acompanham discursos de líderes charlatões especializados na venda de ilusões. Contam meias-verdades, apresentam falsas soluções simplistas e deixam uma brecha de silêncio suficiente para que aquelas populações preencham os vazios com seus preconceitos, temores e angústias.
Com um exército de contas falsas em redes sociais e uma milícia real pelo mundo digital, a receita está pronta para transformar aquela versão dos fatos na verdade chancelada para a manipulação.
Uma vez mais, nada de novo. Basta ver as estratégias adotadas pela Stasi ou da KGB para fazer implodir grupos de resistência com base na mentira, na divulgação de falsos informes e na destruição de reputações.
No século 21, essas informações fabricadas de forma deliberada vieram seguidas por um ataque diário contra os meios de comunicação, numa estratégia orquestrada de deslegitimar qualquer questionamento.
Constrói-se a legitimidade de canais paralelos da realidade, enquanto pilares da democracia são abalados numa estratégia por parte de um grupo que sabia que encontraria terreno fértil.
A mentira, portanto, passa a ser um instrumento de poder. E não é por acaso que, a cada quatro dias, o presidente Jair Bolsonaro dá uma declaração falsa ou imprecisa, segundo um levantamento do jornal Folha de S.Paulo. Não são deslizes. É um método.
Ela serve a várias funções: desviar a atenção das massas e da imprensa para evitar temas estruturais, recriar o passado para justificar decisões futuras ou simplesmente confundir atores que não ousariam cruzar essa linha.
A luta contra a desinformação certamente passa por uma questão de tecnologia e de Justiça. Mas o uso deliberado da angústia de uma população e o grau de aceitação de tais “notícias” devem servir de alerta para que se compreenda a dimensão dos problemas que se enfrenta.
Não bastará fechar um site e punir um difusor de desinformação se temos, ao mesmo tempo, um dos filhos do presidente, Carlos, confortavelmente publicando uma foto armado: de uma pistola e de um computador.
O antídoto terá de passar por uma sólida reação das instituições, por respostas sociais, pelo diálogo, pela aceitação das regras do jogo democrático e por um modelo que mostre que um caminho sustentável exige um longo trabalho. Também passa por uma educação que ensine a pensar, criticar e desconstruir. Não apenas a ser "útil" para o mercado de trabalho.
Uma verdadeira insurreição das mentes numa sociedade dividida e fragilizada não será construída da noite para o dia. No fundo, terá de ser permanente. Enfrentar a realidade da manipulação exigirá lidar com a dor, aceitar o contraditório, questionar as autoridades e construir uma sociedade em que líderes defendam os direitos de todos. Inclusive de seus adversários.
Desmontar o atual Zeitgeist será um missão tão penosa quanto necessária. Mas a busca não poderá ser por um novo partido no poder ou pela troca – uma vez mais – de ideologia. Mas uma busca pela civilização.
O debate sobre desinformação, portanto, não é sobre tecnologia. É sobre sociedade e democracia. E vai exigir muito mais que um debate na Câmara dos Deputados, regado a meias-verdades e muitas mentiras.Jamil Chade
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