segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Arranha-céu de vidro

Em 2013, as incursões de Edward Snowden por computadores a que não fora convidado revelaram que a Agência Nacional de Segurança dos EUA podia vigiar a população americana através de um programa de interferência nos celulares, adquirido das empresas de telecomunicação. Ou seja, a mulher do sujeito podia não saber que ele estava tendo um caso com a Beyoncé, mas o governo sabia.


O Brasil acaba também de instituir por decreto o Cadastro Base do Cidadão —uma “base integradora” de dados pessoais dos brasileiros. Segundo li, constará de dados cadastrais —nome, data do nascimento, sexo, filiação, RG, CPF, CNPJ, PIS, Pasep, título de eleitor etc. A estes serão acrescidas, em devido tempo, as “bases temáticas”, incluindo dados biométricos: palma das mãos, digitais, cor dos olhos, formato do rosto, voz, maneira de andar. Serão dados “interoperáveis”, ou seja, circularão pelos ministérios, agências e demais órgãos do governo.

Não sei se gosto da ideia de ver minhas particularidades circulando alegremente entre pessoas que não conheço. Como todo brasileiro da minha geração e, se não bastasse, jornalista, já convivi o suficiente com censores, burocratas e aspones para saber que, até por questões higiênicas, convém manter distância deles.

Não se trata de temer que eles descubram o que eu penso, se é que penso. Para isso, basta ler esta coluna —que ocupo desde 2007, dia sim, dia não. É pelo tipo de controle moral, econômico e social que, com as novas tecnologias, o Estado pode ter sobre o cidadão e pelas chantagens que disso podem decorrer. E não importa quem exerça esse controle, se esquerda ou direita. Ambas nos vedam a saída.

Lembrei-me de um asfixiante poema de Cassiano Ricardo, em que Deus convoca Adão. E este diz: “Ouvi a Tua voz soar no jardim e temi, porque estava nu, e escondi-me. Escondi-me neste arranha-céu de vidro”.
Ruy Castro

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