quinta-feira, 18 de abril de 2019

Bolsonaro, Haddad, Shakespeare, minha tia e meu tio

Desdêmona: “Fala em matar?”

Otelo: “Eu falo”

Desdêmona: “Então que o céu tenha pena de mim”

O diálogo é da peça Otelo, o mouro de Veneza. A criação de William Shakespeare é considerada uma obra-prima por mostrar como o mouro Otelo, influenciado por Iago, é consumido por um ciúme infundado e cego até matar a sua mulher, Desdêmona. Eduardo Giannetti, ex-professor da Universidade Cambridge e da Universidade de São Paulo, faz uma referência à peça de Shakespeare para dar um exemplo de como vê o debate hoje no Brasil. Para Giannetti, há uma grande polarização e um enorme vazio no meio do espectro político. De um lado, fica a esquerda representada pelo PT. Do outro lado, a extrema-direita do presidente Jair Bolsonaro. “Cada um dos polos só presta atenção naquilo que confirma suas crenças e despreza tudo aquilo que pode minar o que acredita, como alguém ciumento que acha que tudo confirma suas desconfianças.”


O Brasil acabou virando um país de Otelos surdos, cegos, intransigentes e encastelados em suas fortalezas. Uma pesquisa do Instituto Ipsos mostra que o Brasil registra um nível de intolerância política que supera 27 outros países analisados. O levantamento mostra que 31% dos brasileiros acham que quem tem visão política diferente não liga, de verdade, para o futuro do país, 32% dizem que não vale a pena debater com quem não tenha as mesmas ideias sobre política e 39% afirmam que quem tem visão política diferente foi enganado. Num ambiente assim, há pouca gente genuinamente se questionando e tentando olhar, com empatia, a situação de quem está do outro lado.

A polarização é anterior à ascensão de Jair Bolsonaro, vem dos tempos do “nós contra eles”, mas acabou se exacerbando. Os eleitores que votavam em partidos de centro correram para os extremos, provocando a erosão do meio. Os efeitos disso vão muito além de estragar a festa de Natal de quem, como eu, tem uma tia petista e um tio bolsonarista. A polarização é certeza de conflito também no meio político, com abusos e baixarias.

O estilo de Bolsonaro e de pessoas de seu entorno é um desafio para quem se opõe a suas ideias. Olavo de Carvalho, o ideólogo do presidente, recorre invariavelmente a xingamentos quando confrontado, numa atitude totalmente estranha ao debate. Por sua presença nas redes sociais, Bolsonaro parece acreditar ter uma linha direta com o “povo” e, por isso, mantém uma postura de “porta-voz das ruas”, o que justificaria não seguir a liturgia do cargo que ocupa. Diante de um quadro desses, a reação automática e fácil é responder na mesma moeda. O problema é que, ao descartar a civilidade, também se abre mão da tolerância, um valor caro a uma democracia funcional. A “cena” protagonizada por Fernando Haddad e Carlos Bolsonaro na semana passado no Twitter na troca de mensagens sobre o Bolsa Família é um exemplo do caminho a ser evitado.

Quem entende que Bolsonaro representa a mudança desejada não pode fechar os olhos para seus equívocos. Quem acha que Bolsonaro precisa ser combatido não deve deixar de reconhecer propostas do governo que podem fazer sentido. Falar de impeachment e de parlamentarismo com três meses e meio de governo é um desserviço à democracia brasileira.

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