A legislação em vigência substituiu o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, tido como uma das últimas peças jurídicas do regime militar. Foi construída com base em um projeto do ex-senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que foi ministro das Relações Exteriores de Temer, e modificações no texto original ocorreram na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff.
Mudanças na Lei de Migração estão sendo avaliadas por integrantes do governo e têm a defesa, principalmente, do grupo identificado com o escritor Olavo de Carvalho. Ainda não há posição fechada sobre o encaminhamento de uma proposta. Entre as possibilidades avaliadas, está a apresentação de um projeto de lei por deputado ou senador governista, com apoio do Palácio do Planalto.
Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) explicitou suas críticas à lei atual. Há duas semanas, em uma audiência esvaziada da comissão temporária da Câmara que discute a crise venezuelana, relatou conversa que teve com uma funcionária de empresa aérea no aeroporto internacional de Guarulhos.
Segundo o relato do deputado, essa funcionária o procurou para contar que às vezes chegam aviões, "normalmente voos vindo da África", com pessoas sem conhecimento de uma única palavra em português, que "só sabem falar autorrefugiado e já têm a petição de autorrefúgio no smartphone delas".
Em apenas um dos voos, segundo Eduardo Bolsonaro, chegaram "mais de 30 pessoas" pedindo refúgio. Ele atribuiu essas solicitações à legislação sancionada em 2017. "No papel ela é muito legal, muito boazinha, vamos receber todo mundo. Só que está chegando uma quantidade de pessoas desordenadamente", afirmou.
O assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, é um dos integrantes influentes do governo sensíveis ao assunto. Uma eventual mudança na lei também estaria em linha com o discurso do chanceler Ernesto Araújo, que anunciou em janeiro a retirada do Brasil do Pacto Global de Migração, um documento da ONU que estabelece diretrizes para a cooperação internacional sobre políticas de acolhimento a imigrantes. Países como Estados Unidos, Hungria e Polônia se recusaram a assinar o pacto por entenderem que ele é incompatível com sua soberania.
O advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça (governo Dilma) e um dos principais negociadores da atual Lei de Migração, acredita que os bolsonaristas fazem uma confusão ao abordar o tema. De acordo com ele, mais do que essa legislação, questões relacionadas a pedidos de refúgio no país são tratadas em detalhe por outra lei, de 1997.
"São disciplinas diferentes. O refúgio tem regime próprio, fruto de convenção da ONU, assinada pelo Brasil. Qualquer mudança pode significar violação de compromissos internacionais assumidos desde a década de 1960", diz o ex-secretário, hoje sócio do escritório XVV Advogados.
Conforme argumenta Vasconcelos, o espírito da convenção e da lei brasileira que internaliza esse tratado não é meramente versar sobre fluxos migratórios, mas proteger indivíduos perseguidos por Estados. Seis tipos de perseguições são reconhecidas: por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas, grave e generalizada violação de direitos humanos. Nessa última categoria, poderiam se enquadrar os venezuelanos que fogem da crise, por exemplo.
Já a Lei de Migração fala muito sobre o regime de garantias jurídicas para imigrantes, trocando o enfoque no estrangeiro como potencial ameaça à segurança nacional, que era a base da lei anterior.
Qualquer que seja a proposta de revisão, alerta o ex-secretário, haveria retrocessos na abordagem externada por Eduardo Bolsonaro. "São apenas ameaças preconceituosas, mas também anacrônicas à política de desenvolvimento social e econômico do país. Se hoje falamos de reforma da Previdência, é porque estamos envelhecendo e perdemos o bônus demográfico. Imigrantes são fonte de conhecimento e empreendedorismo. Precisamos de inteligência e gestão para lidar com os remotos casos de risco à segurança, mas sem tirar o Brasil da vanguarda na proteção humana, coerente com a história de um país tão forjado na diversidade", diz Vasconcelos.
O deputado Bolsonaro rechaça qualquer rótulo de preconceito em suas observações. "Não sou contra imigração, não. Eu sou descendente de italiano. Se eu for contra imigração, estaria sendo suicida", disse na audiência pública. "Mas será que temos segurança, por exemplo, para mover a embaixada do Brasil para Jerusalém com a tranquilidade de que temos nossas fronteiras controladas?", questionou o filho do presidente.
Ponto a notar: o brasileiro tem uma percepção errada sobre a realidade. Os estrangeiros representam hoje só 0,4% da população. No entanto, quando cerca de mil entrevistados no Brasil foram questionados em uma pesquisa do instituto Ipsos, a resposta média diz que a proporção de imigrantes é de 30%. Como em boa parte deste mundo cheio de medos, culpar aqueles que vêm de fora pelos problemas domésticos rende aplausos de um eleitorado com crescente sensação de insegurança, mas à custa de simplificações e explorando a vulnerabilidade de quem merece ser protegido.
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