O exercício da memória é fundamental nos seres vivos e em particular dos humanos. É ela que nos possibilita evitar os perigos já conhecidos e voltar a obter satisfações semelhantes às anteriormente experienciadas. É ela que nos ajuda a progredir em eficácia e eficiência nas nossas tarefas e a evitar métodos inócuos ou perniciosos na tentativa de alcançar os fins pretendidos.
O funcionamento da memória é um dos processos mais complexos executados por esse órgão fascinante que é o cérebro humano. Mas a memória colectiva funciona doutra forma e vai-se desvanecendo, em grande parte porque a atenção mediática se centra na espuma dos dias.
Talvez por isso o parlamento português tenha decidido no ano passado, por unanimidade e em boa hora, estabelecer o Dia da Memória das Vítimas da Inquisição, a evocar anualmente, como “um resgate da memória das várias vítimas da Inquisição, desde os judeus a seguidores de outros credos, ou até maçónicos e homossexuais, entre outros cidadãos”. Fê-lo a partir da iniciativa dum grupo de cidadãos que apresentaram uma petição nesse sentido à Assembleia da República, a fim de lembrar as vítimas dos 45.000 processos da Inquisição, e onde se pedia que fosse erigido um memorial em Lisboa, no Rossio, em frente ao Teatro Nacional D. Maria II, onde era a sede do Tribunal do Santo Ofício e habitualmente se realizavam os autos-de-fé.
Segundo Anita Novinsky: “A instituição do Tribunal da Inquisição em Portugal foi obra de um jogo entre os interesses da Igreja e os do Estado”, tendo-se tornado um excelente negócio para alguns. A Cúria Romana vendeu-se pelo vil metal e vários cardeais receberam avultadas prebendas da coroa. O núncio da Santa Sé Capodiferro acumulou enormes riquezas, ajudando os cristãos-novos a fugir. Quando um navio que transportava os seus bens naufragou, o embaixador português comentou satisfeito: “Não é sem razão que esse barco, carregado de despojos do sangue de Nosso Senhor Jesus e dos presentes ofertados por seus inimigos, soçobrou no mar” (Herculano, 1975, tomo 2, p. 255).
A organização entrou no país de 1546, pela mão de D. João III, e manteve-se até 31 de Março de 1821, quando foi formalmente extinta, pelo parlamento. Entretanto: “(…) criou colaboracionistas, gratificou a delação e transformou, como disse o poeta Antero de Quental, a hipocrisia num vício nacional (…). Com a aplicação dos estatutos de pureza de sangue, antecipou de 400 anos o racismo do século XX” (Novinsky, A., A Inquisição, p. 24).
Quando temos a consciência de que só há cerca de 200 anos aquela malfadada máquina foi desmantelada (apesar de já não se queimarem pessoas na fogueira há muito), não nos admiramos ao verificar um certo espírito inquisitorial ainda presente na sociedade portuguesa. Pode-se revogar uma lei num dia, pode-se desmantelar uma instituição numa semana, mas as mentalidades demoram gerações a mudar. E dois séculos não são assim tantas gerações com potencial de mudança num país monolítico em matéria de religião, com uma mesma língua e com fronteiras estáveis há quase 900 anos.
É certo que com a instauração da democracia em 1974 e especialmente com a descolonização e a adesão à Europa, assim como a abertura das fronteiras, o país começou finalmente a abrir-se, a mudar, a complexificar-se. Com a globalização, as tecnologias de informação e comunicação e os movimentos migratórios aprofundou e acelerou tais mudanças.
As gerações mais novas têm o direito de conhecer as páginas negras de quase 300 anos da história nacional, não só por uma questão de combater o esquecimento mas em razão da cidadania e da formação das consciências, até porque os cantos de sereia dos populismos de direita e de esquerda ouvem-se cada vez mais alto por essa Europa fora. Os demónios andam por aí à solta com aparência de anjos de luz. Os discursos extremistas, as propostas políticas radicais, a falta de formação e a desinformação das populações estão a criar um caldo de cultura para o surgimento de um amado líder (leia-se ditador) que venha prometer-nos qualquer dia um reinado de mil anos. E depois não vai interessar muito se Hitler era de direita ou de esquerda, como teoriza o pobre Bolsonaro.
A Pide (polícia política do salazarismo), de má memória, foi um sucedâneo da Inquisição, assim como as políticas repressivas da ditadura, que replicaram práticas nazis, fascistas e estalinistas. Os efeitos da Inquisição ainda se fazem sentir em Portugal, nalgumas campanhas políticas, no politicamente correcto, nas causas fracturantes, no discurso de todos os donos da verdade e até nalguns acórdãos judiciais. Temos que estar atentos.
José Brissos-Lino ( Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – Universidade de Lisboa)
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