quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

'California dreamin'

Queixam-se do Congresso mas o nosso maior problema está no pedir e não no que nos é entregue. A falta de qualquer referência não européia nos põe mais longe da saída que todos os outros percalços somados.

A relação interpessoal proporcionada pela internet, lamentava-se o franco-uspiano Fernando Henrique Cardoso num programa que comparava os fenômenos Trump e Bolsonaro na TV na virada do ano, bagunçou um coreto que foi armado para e pela intermediação dos partidos (sustentados pelo governo), através das TVs (outorgadas pelo governo), da imprensa e do resto desse nosso “sistema de representação do povo” sem povo. Do outro lado da mesa esbravejava um representante da outra corrente européia com que nos alternamos quando a terceira, a abertamente antidemocrática, dá folga. “Prendam todos! Não deixem nenhum à solta”! A provocação era trancafiar FHC também, mas essas duas faces da nossa “persona” européia se odeiam mas são gêmeas. Para uma “o sistema” é bom, o que falta é só política. Para a outra “o sistema” é bom, o que falta é só polícia. Nutrem ambas um mal confessado horror à falta de glamour e refinamento da igualdade não intermediada. À vida regida pela base da sociedade e não pela “autoridade dos melhores” (aristo-kratia). Ao império sem filtro da lei, à meritocracia e à destruição criativa.

Mas nós falamos, afinal, do “pior dos regimes políticos, excluídos todos os outros”. E é aí que encaixo Roberto Damatta relatando sua própria experiência de brazuca emigrado para os Estados Unidos no artigo “Encruzilhadas” publicado neste jornal nesta quarta-feira, 16, em que escrevo. “Passar da desigualdade para o igualitarismo requer acrobacias sociopsicológicas (…) impossíveis de praticar sem um exame aprofundado (…) de quem fomos e de quem somos porque os costumes são tão coercitivos quanto as leis”. Não temos conserto dentro desse “passado aristocrático absolutamente eurocentrado de imperadores (…) e a massa negra escravizada (…) que nossos pensadores viam (e inconfessadamente continuam vendo até hoje) como natural”.


“A reforma previdenciária”, resumia Damatta, “tem de fazer parte de um movimento arrebatador. Trata-se, no fundo, de uma guerra do Brasil contra o seu lado equivocado”.

Os Estados Unidos menos americanos, o federal, estão à beira da disrupcão como farsa pela mão de Donald Trump, O Tapeador, mestre da manipulação das redes. Já a Europa saiu do feudalismo mas o feudalismo nunca saiu da Europa. De lá vieram e nos foram impostos “os costumes tão coercitivos quanto leis” que estão aí até hoje mas nós já nem sentimos. O Brasil pós-Tiradentes passou a censurar com fúria a nossa americanidade essencial de povo até então sem rei e nunca mais parou. E quanto mais privilégios os nossos “representantes do povo” independentes do povo “adquirem” e transformam em lei mais se inverte e perverte a hierarquia povo-governo que a democracia nasceu para estabelecer até transformar-se nesse esdrúxulo feudalismo constitucional a que acabamos por nos acostumar.

Para termos democracia será preciso, antes de mais nada, aprendermos a identificá-la. “Esse sistema sempre em débito consigo mesmo, inacabado e caracterizado por permanentes ajustes”, na descrição de Damatta, define-se essencialmente pela quantidade de poder que o eleitor tem antes e depois do momento da eleição para levar adiante esses ajustes. E o brasileiro não tem nenhum.

É essa a doença. Corrupção é só ausência de democracia e não vai acabar apenas com polícia. Não é da Europa que a resposta virá. A democracia real é a anti-Europa. Nasce em função da ausência do rei e caminha de oeste para leste. Da América impôs-se à Europa. Da Costa Oeste impôs-se a Costa Leste dos Estados Unidos. No Brasil será parecido. O último a entrar será o da praia.

Nos primeiros dias deste ano a Califórnia, que ainda no século 19 começou a revogar o modelo estático que nos oprime, contabilizava a safra de democracia dos 12 meses de 2018. Que Trump, que nada! 726 leis de inciativa popular, referendos de leis dos legislativos, votações de retomada de mandatos (recall), eleições de retenção de juízes e outras decisões foram diretamente votadas pelos californianos nas 9 “eleições especiais” convocadas para esse fim além da nacional de 6 de novembro.

Dentro do sistema distrital puro, começando pela célula do bairro que elege o board de pais de alunos que vai gerir a escola publica local e seguindo pelos distritos eleitorais municipais (uma soma dos de bairros), estaduais (uma soma dos municipais) e federais, cada pedacinho do país elege apenas um representante para cada instância de governo. Como o que define o distrito é o endereço do eleitor todo mundo sabe exatamente quem representa quem. E sendo a identificação tão clara ele retem o direito de cassar o mandato do seu representante a qualquer momento mediante a coleta de assinaturas e a convocação de “eleições especiais” só no distrito afetado para decidir essas e outras questões.

As que envolvem impostos não têm exceção. Nenhum nasce ou se mexe sem voto. As que ordenam obras publicas e decidem como serão financiadas idem. Os futuros usuários decidem se as querem ou não no modelo e pelo preço proposto e estabelecem, uma por uma, quem, como e quando vai pagar por elas. Valor do IPTU, construção ou não de uma ponte, valor do salário minimo local, reajuste de planos de saude, liberação ou não da maconha, normas para compra e uso de armas, tudo é decidido no voto em cada distrito eleitoral municipal, estadual ou federal somente por quem vai usar cada bem, pagar por ele ou ser obrigado a se submeter à lei em exame.

Olhado a partir da meca planetária da inovação política, que não por acaso é também a meca planetária da inovação tecnológica, o mundo não parece, portanto, tão disfuncional quanto Fernando Henrique o vê. Essa democracia e as redes têm tudo a ver. Nós é que, desde 1808, andamos com a cabeça sabe-se lá aonde.

Mudar o país de dono, vulgo democracia, é o que cura o Brasil.
Fernão Lara Mesquita

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