No momento histórico em que os políticos brasileiros mais recorreram para sua sobrevivência aos votos das igrejas, nas últimas eleições, é curioso que tenham acabado se precipitando em sua maior crise de identidade. A velha política que se alimentava da religiosidade, sobretudo dos mais pobres, é hoje entregue a uma nova sacralização que coloca Deus no centro da sociedade. E não o Deus da liberdade e da compaixão, mas o Deus das armas, das velhas cruzadas religiosas.
Não é de estranhar que o capitão reformado eleito presidente do Brasil tenha escolhido para dialogar com o mundo um diplomata como Araújo, que pretende salvar o Ocidente voltando a colocar a religião cristã no centro da história. "Só Deus pode salvar o Ocidente", escreveu o futuro ministro de Relações Exteriores, e apresentou como o paladino dessa salvação o presidente norte-americano, Trump, o único que, segundo ele, "pode salvar o Ocidente". Os dois deuses, destinados, segundo o diplomata, a salvar a civilização ocidental em crise seriam nada mais e nada menos que Trump e Bolsonaro.
Vivemos, porém, em um mundo em plena evolução tecnológica, com os horizontes quase infinitos da inteligência artificial e com o Homo Sapiens prestes a dar um salto quântico na batalha final contra a doença, a fome e a violência no mundo. Restringir a rica e milenar cultura ocidental, com sua capacidade de "conduzir a história", na expressão de Lavisse, à volta dos deuses ao governo, com suas teologias castradoras e o peso do obscurantismo medieval, é ignorar o que representou para o mundo e representa ainda hoje a civilização ocidental. É a essa civilização que o mundo, e não apenas o Ocidente, deve as conquistas e os valores mais valiosos da história da humanidade.
Foi o Ocidente que elaborou todos os conceitos sobre os quais os Estados modernos são fundados, desde o Renascimento à Reforma protestante. Foi o Ocidente que elaborou os conceitos de democracia, do iluminismo, do humanismo, da arte e da cultura de vanguarda que nutriram gerações inteiras. Foi o Ocidente que forjou os conceitos da secularidade do Estado, das liberdades democráticas. Foi o Ocidente que sancionou os direitos humanos, incluindo o direito à liberdade, ao voto, ao respeito pelos diferentes e as minorias.
Querer hoje, no Brasil, voltar aos anos mais obscuros do Ocidente, proclamando como seus novos deuses políticos à la Trump ou Bolsonaro, é querer voltar aos tempos dominados pelos dogmas religiosos das igrejas que acorrentavam as consciências, convocavam para as guerras santas e impediam aproveitar a existência em liberdade, atemorizando com castigos e demônios, fogueiras e inquisições.
Será verdade que o jovem Brasil, que carrega em suas veias o sangue da miscigenação, da pluralidade de credos, do gosto pela vida desfrutado em liberdade, deseja ressuscitar os tempos sombrios e autoritários da Idade Média?
O Brasil vai querer voltar à era dos reis e vassalos, dos castelos e muralhas, das guerras religiosas e dos medos da modernidade? O Deus não manipulado pelo poder é aquele que proclamou que seriam felizes os semeadores da paz, e não da discórdia. O deus do Brasil, pelo que conheço deste país, só pode ser aquele dos braços abertos que acolhe sem perguntar em que você acredita, em quem você vota, qual é a cor da sua pele e como quer viver sua sexualidade e criar sua família. Difícil imaginar, apesar da crispação da sociedade, que o deus brasileiro seja o deus da ira. Não combina com o que sempre amou e sonhou.
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