sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Os últimos capítulos do ciclo de 2013

O primeiro turno das eleições de 2018 praticamente esgotou o ciclo do sistema partidário iniciado na Nova República e consolidado com o impeachment de Collor. Esperava-se uma grande mudança política no pleito presidencial, mas não o tsunami - ou "bolsonami" - que atingiu as governadorias, as Assembleias Legislativas, a Câmara Federal e o Senado.

Tudo isso que parece ser completamente inusitado, na verdade não é. Trata-se do penúltimo capítulo da novela iniciada em junho de 2013. O fim da história - a escolha do presidente e a estruturação de seu governo - ainda está em aberto. Seja qual for o resultado, algo novo emergirá.

As manifestações de 2013 iniciaram o processo de derrocada de um sistema que foi muito estável durante 20 anos. Sem dúvida, esse arranjo político trouxe vários resultados positivos, como a estabilização econômica, a ampliação das políticas sociais e a manutenção e fortalecimento da democracia, o que permitiu inclusive uma crítica aguda da sociedade contra os partidos e políticos, bem como o "empoderamento" de instituições de controle no combate à corrupção.

Os passos seguintes vieram com a Operação Lava-Jato, o impeachment e o sentimento de total desesperança instalado durante o governo Temer, o presidente mais mal avaliado desde o inicio da redemocratização. Como resultado da soma de crises, o sentimento antissistema cresceu muito. Ele já havia se revelado em 2016 e, agora, teve seu ápice com a votação de Bolsonaro e de muitos de seus aliados nos Estados. À primeira vista, trata-se apenas de uma vitória do conservadorismo, no entanto, talvez seja mais complicado entender o epílogo de um processo de renovação política.


Para evitar a visão de quem já sabe o fim da história, é preciso compreender bem o recado das urnas, inclusive com suas contradições e lacunas. O aspecto que mais chama a atenção é um processo de renovação com perfil mais conservador. Isso ficou claro nos nomes que vão disputar o segundo turno em governadorias importantes, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, ou que já ganharam no primeiro turno, como no Paraná. Mais do que isso, o PSL, vindo praticamente do nada, tornou-se o segundo maior partido na Câmara. O "bolsonarismo", mesmo que ainda seja um ideário difuso, mostrou que terá um lugar central no Brasil dos próximos anos. Sua prova de fogo, como a de todos os movimentos novos, será sua prática nos governos que vier a ocupar.

O crescimento conservador não significa que ele será majoritário no sistema político. Nos Etados, terá que negociar com vários governadores que se situam do centro para a esquerda. No Senado e na Câmara, está bem de longe da maioria. E mesmo com o estupendo desempenho de Bolsonaro, ele não ganhou no primeiro turno, tem 45% de rejeição e pode ter uma vitória tão apertada quanto a de Collor, ou mesmo perder. No caso de vitória, sem o apoio de outros grupos sociais, especialmente do centro do eleitorado, e sem conversar com adversários políticos com cargos institucionais, o "bolsonarismo" no poder precisará seguir um caminho mais bonapartista, algo que em nossa democracia não tem dado certo, como provam figuras políticas tão distintas quanto Jânio e Dilma.

Tão relevante quanto o crescimento do conservadorismo foi a enorme derrocada dos tradicionais MDB e PSDB, que diminuíram muito de tamanho nas eleições legislativas e no plano do Executivo. Foi a pior votação dos tucanos desde o surgimento do partido e o medebismo foi drasticamente reduzido na Câmara, passando de 66 deputados eleitos em 2014 para 34 agora.

PSDB e MDB, juntos com o PT, foram os principais pilares do sistema partidário que se estabilizou a partir do governo Itamar Franco e, especialmente, com a primeira vitória de Fernando Henrique à Presidência da República. De fato, há um clamor para renovar o modelo político e essas duas legendas precisarão se remodelar fortemente, ou serão substituídas por outras. O problema é que elas detinham quadros políticos profissionalizados para a articulação política e para a produção de políticas publicas (principalmente os tucanos), qualificações que não serão facilmente substituídas, pois demandam tempo e prática governamental.

O sistema político ficou ainda mais fragmentado, se levarmos em conta a distribuição de governadorias e o Legislativo: 30 legendas terão representantes na Câmara e 20 elegeram senadores, dois recordes do período da redemocratização. É possível que o bloco do Centrão seja novamente a forma de organizar os partidos do centro para a direita. Mas seus métodos vão ser colocados em questão muito mais do que noutras épocas, por conta dos novos atores que se elegeram em 2018.

Da tríade que alicerçou o jogo político desde o impeachment, o PT foi o que menos colecionou derrotas. Ele continua sendo o partido com maior número de deputados, ganhou o governo de três Estados - Bahia, Ceará e Piauí - e está ainda no segundo turno em outro, o Rio Grande do Norte. O desempenho petista no Nordeste foi ótimo. Na verdade, para além do petismo, a votação da centro-esquerda (PT, PSB, PDT e PCdoB) foi hegemônica entre os eleitores nordestinos, elegendo mais de um terço dos deputados e conquistando cinco Estados no primeiro turno. Porém, esse predomínio contrasta com sua perda de importância no Centro-Sul do país, cujos cidadãos se inclinaram mais à direita.

Mais do que isso: a enorme onda bolsonarista que se manifestou na reta final do primeiro turno relaciona-se fortemente com o antipetismo. É inegável que o PT continua sendo uma peça-chave do sistema, com um candidato presidencial com quase 30% dos votos nacionais, uma grande bancada no Congresso e uma força enorme no Nordeste, segunda Região com mais eleitores no país. Contudo, o voto no Centro-Sul brasileiro revelou um grande sentimento antipetista da população, que não só torna mais difícil uma vitória na eleição presidencial como gera barreiras a um possível governo Haddad.

As urnas trouxeram, portanto, várias configurações políticas e ninguém terá uma hegemonia clara. O país está dividido por diferentes medos, que assolam eleitores dos dois lados. Se quiserem vencer e, sobretudo, governar, Bolsonaro e Haddad terão de fazer acenos mais concretos ao centro e se mostrar dispostos a dialogar com múltiplos atores. O presidenciável do PSL precisará reduzir a desconfiança quanto a um possível comportamento autoritário e refratário aos direitos humanos. Suas falas e de seus aliados nos últimos anos deixam em pânico quase metade da população. Já o candidato petista assusta quase a outra metade, por conta do fracasso econômico da era Dilma, das denúncias de corrupção e da ambiguidade com que muitos líderes do PT tratam regimes autoritários como o da Venezuela.

Qualquer que seja o vencedor em 2018, ele terá de comandar a montagem de um sistema político cujas estruturas começaram a ruir em 2013 e deram um sinal fatal agora. Não há uma forma única de fazer isso. Lembro aos leitores que no princípio de tudo isso, em 2013, houve milhares de pessoas que foram às ruas gritar o lema "Sem partidos", o mesmo que havia sido cantado pelos fascistas comandados por Mussolini na Marcha sobre Roma. O sentimento antissistema é positivo na crítica às mazelas do sistema partidário, marcado por vários focos de corrupção e pela criação de uma oligarquia que barrou a renovação das lideranças políticas do país em quase todas as legendas. Não obstante, é preciso pensar numa refundação política que mantenha e fortaleça a democracia, e não jogar a criança fora junto com a água do banho.

Para fazer uma efetiva modernização da política brasileira, todos os espectros políticos terão que se repensar. O PT e a centro-esquerda precisam reformular seu programa de governo, buscando sua finalidade de combate à desigualdade por meio de políticas públicas renovadas, o que significa abandonar todo o legado dilmista. Além disso, precisam reafirmar a importância da democracia em todos os lugares do mundo e aumentar sua capacidade de diálogo com os diferentes. Nesta linha, o petismo será melhor se for menos hegemonista e mais inclusivo com outras forças políticas.

Do outro lado da disputa atual, é fundamental que o novo conservadorismo reafirme suas credenciais democráticas e aprenda com a experiência internacional de países governados por conservadores civilizados. Bem perto daqui há o caso do Chile, onde Sebastián Piñera faz políticas públicas geralmente lastreadas em evidências - e não no senso comum e em visões figadais - e demitiu recentemente um ministro que elogiara a ditadura. Uma corrente conservadora é importante em todas as democracias, mas quando ela é marcada por autoritarismos e amadorismos é um passo para o abismo.

Em poucas palavras: Bolsonaro poderá terminar a história iniciada pelas manifestações de 2013 com um rearranjo do sistema político seguindo as regras democráticas, ou poderá ser uma pá de cal na democracia duramente construída desde 1985. Ainda há dúvidas se essa novela iniciada pelo clamor das ruas vai terminar fortalecendo a soberania popular ou iniciar um novo período de trevas, em que os porões serão, novamente, mais importantes do que a luz do sol.

Nenhum comentário:

Postar um comentário