terça-feira, 7 de agosto de 2018

Massacre anunciado na Amapu de Dorothy Stang

“Já conferi na lista, mãe. Meu nome não está lá”, garantiu Leoci Resplandes de Sousa, poucos dias antes de ter o corpo transformado numa peneira. Na maioria das cidades, poderiam ser muitas as listas. Aprovação no vestibular, contratados por alguma empresa, selecionados para algum concurso público. Mas não em Anapu, município do estado do Pará que entrou no mapa mental do Brasil e do mundo em 2005, quando a freira Dorothy Stang foi executada com seis tiros por defender os direitos dos mais pobres à terra e, com isso, confrontar os interesses dos grileiros (ladrões de terras públicas). Em Anapu, no Pará, 13 anos pós o assassinato da missionária, a lista ainda é a de camponeses marcados para morrer.


Leoci não estava na lista. Mesmo assim foi assassinado em 3 de junho, ao final da tarde, sentado com a mulher no alpendre da casa depois de um dia de roça. Segundo a sua mãe, liderança do lote 46 da Gleba Bacajá, “com 23 chumbos de 12 (calibre da espingarda)”. A lista ou não estava completa. Ou há mais de uma lista. Segundo afirmam pessoas que não podem ser identificadas, a “lista” está nas mãos de um dos chefes da pistolagem. Haveria pelo menos três figuras-chaves na pistolagem e uma milícia armada. Quando um trabalhador rural precisa saber se o seu nome está lá, aciona intermediários que vão “assuntar”. Isso é contado com naturalidade na cidade e no campo de Anapu, como mais um dado da rotina. Não há limites para o que pode ser naturalizado nas regiões em que ou o Estado não está presente – ou está presente a serviço da grilagem e da extração ilegal de madeira, o que é bastante comum no território amazônico.

A de Leoci foi apenas uma entre 16 cruzes de madeira cravadas nas casas dos mortos durante a Romaria da Floresta, entre 19 e 22 de julho. Realizada há 13 anos, desde o assassinato de Dorothy Stang, esta foi a primeira vez que a romaria andou pela cidade em vez de percorrer 25 quilômetros de estradas rurais por dia. A mudança foi um pedido dos camponeses que temem pela vida devido à escalada de violência e a criminalização dos movimentos sociais na região de Anapu e em toda a Amazônia.

Padre José Amaro Lopes, um dos principais sucessores de Dorothy Stang na defesa dos pequenos agricultores, foi preso com um buquê de acusações em 27 de março. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, o “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, padre Amaro passou a responder às acusações em liberdade, mas sujeito a várias restrições. Na romaria, os camponeses gritavam: “Irmã Dorothy vive! Padre Amaro livre!”.

Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse. Ele, um sacerdote desarmado que se preparava para cumprir as obrigações rotineiras, foi preso como se fosse um chefe da máfia. A espalhafatosa operação envolveu 15 policiais e vários setores da polícia paraense. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.

As 16 cruzes e nomes, segundo a Comissão Pastoral da Terra, correspondem aos mortos por conflitos de terra apenas em Anapu, de 2015 até hoje. Exceto um punhado de homens e mulheres com as mãos escavadas pela enxada e os pés marcados pela dureza do caminho, ninguém mais parece revoltar-se contra a execução desses brasileiros pobres: Edinaldo Alves Moreira (05/07/2015), Jesusmar Batista Farias (11/08/2015), Cosmo Pereira de Castro (23/08/2015), Hercules Santos de Souza (17 anos, 10/10/2015), José Nunes da Cruz (“Zé da Lapada”, 27/10/2015), Claudio Bezerra da Costa (“Ivanzinho”, 31/10/2015), Wislen Gonçalves Barbosa (17/11/2015), José de Nascimento (“Jacaré”, 20/04/2016), Lourinho (20/04/2016), Marrone Gomes da Conceição (16 anos, 08/06/2016), Antônio Pereira Queiroz (“Titela”, 08/06/2016), Parazinho (desaparecido em 2016, considerado morto pelas organizações), Jhonatan Alves Pereira dos Santos (“Jhon”, 26/07/2017), Valdemir Resplandes dos Santos (“Muletinho”, 09/01/2018), Gazimiro Sena Pacheco (“Gordinho”, 09/01/2018), Leoci Resplandes de Sousa (03/06/2018).

Em 24 de julho, a organização britânica Global Witness (Testemunha Global) divulgou o relatório chamado “A que custo” (aqui a versão em português). O ano de 2017 foi o mais perigoso no mundo para defensores da terra ou do meio ambiente. O Brasil é o país mais letal para esses lutadores, com 57 dos 207 assassinados. Hoje, não existe no planeta nenhum lugar mais perigoso para quem luta pela terra ou pelo meio ambiente do que o Pará, o mais mortal entre todos os estados brasileiros.

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