Ou o “agosto, mês do desgosto” surgiu da “gripe espanhola” que aqui brotou em agosto-setembro de 1918, há 100 anos, e fez o oitavo mês ser visto como maldito? Espalhada pelos cadáveres putrefatos da Grande Guerra de 1914-1918 na Europa, a “espanhola” matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas mundo afora. No Brasil, 300 mil mortos, entre eles o ex-presidente Rodrigues Alves, recém-eleito para um novo mandato do qual nunca tomou posse.
Agora, o tom funéreo reaparece no desinteresse e na apatia que marcam a próxima eleição de presidente e governadores. Será que certas datas de agosto marcaram tanto o século 20, ou a própria vida, que parecem ter ocorrido horas atrás, impedindo de pensar no futuro?
A 2.ª Guerra Mundial, por exemplo, nasceu a 28 de agosto de 1939, quando Hitler mobilizou o exército alemão e, três dias depois, invadiu a Polônia. Conhecemos o que veio em seguida, inclusive o terror das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945.
Foi no Brasil, porém, que esse mês se tornou um marco. A 24 de agosto de 1954, o suicídio do presidente Getúlio Vargas culminou numa crise cujas consequências indiretas perduram, em parte, até hoje. Em 1961, consolidávamos a convivência quando a estapafúrdia renúncia do presidente Jânio Quadros (a 25 de agosto, com menos de sete meses de governo) mostrou que não sabíamos conviver em democracia.
Em 1964, a ditadura inventou seus “agostos” de “atos institucionais” em qualquer mês e data. Depois, voltamos à normalidade, mudamos de século e vimos como mudavam também os epicentros da política e da sociedade. Ou como novos ídolos tropeçavam em seus pés de barro. E, assim (sem ter de recordar o que todos sabem), a 31 de agosto de 2016 Michel Temer assume a Presidência da República em forma definitiva, não como mero “vice” interino.
O que mais podemos esperar? Ou que outros desastres estarão encobertos neste agosto pré-eleitoral, de pobreza tão ampla e profunda que chega a abrir espaço para candidatos como Lula da Silva e Jair Bolsonaro, tão iguais um ao outro no tom místico e autoritário, na habilidade de nunca revelar o que são de fato?
Cito os dois porque neles se resume aquilo que o exercício da política e da vida pública tem de perigoso ou até de perverso. Não se trata de conclusão pessoal. Eles próprios – Lula e Bolsonaro – se desnudam em público alegando que jamais foram o que são nem como agem, ou sequer como sempre demonstraram ser.
Nada os diferencia. Nem que um diga ser de um lado e o outro afirme estar em outro. Tampouco que um tenha pose de “esquerda” e o outro pose de “direita”, pois a diferenciação já não existe no dia a dia. Além disso, jamais alguma pose definiu alguém, e é apenas “uma pose”, tão falsa e quebradiça como um anel de vidro.
O que distingue Lula e Bolsonaro é apenas a habilidade de se esconder mais ou ocultar-se menos. O ex-torneiro mecânico é simpático e, mesmo preso, mostra-se humilde. Refinado ator, é tão atraente que (quando no poder) arrancava aplausos de intelectuais ao elogiar a ignorância e se jactar de “não ter curso algum”. O ex-capitão é também consumado ator, mas de outros palcos. É dos que buscam aplausos pela antipatia de “ser duro” com tudo, mas nunca consigo mesmo e, menos ainda, ao abrir a boca para exteriorizar machismo, preconceitos, rancor ou até ódio.
Nem um nem outro tem visão crítica do que faz. Mostram a exacerbação interior de um vulcão pronto a explodir, e nisso são aprendizes de Hitler. Vomitam ideias ou teorias perigosamente estapafúrdias como se descobrissem o Éden. E o público, ávido pelo novo, às vezes toma o vômito ácido como se fosse champanhe francês…
Depois que o mensalão e as erupções das diferentes “Lava-Jatos” mostraram o conluio perverso entre o público e o privado, merecíamos um horizonte melhor no qual confiar nosso voto. Além deles, porém, temos apenas um amontoado informe e difuso de candidatos afirmando generalidades e, com elas, “reformando” o Brasil.
Onde estão os programas concretos de ação futura? Os chefes de partido viraram gerenciadores de espaço na TV e, de fato, alugam-se para isso. Quanto ao povo, os candidatos nada dizem nem escutam. Quando parecem escutar, apenas ouvem o eco de si mesmos.
Como romper esse imobilismo e fazer com que a urna não se transforme numa tumba eletrônica em que sepultamos o futuro apertando botões com números? Optar pelo “menos pior” pode ser a única saída, mas será, sempre, uma cilada que armamos para o amanhã. O resto é inibição ou medo.
Nos anos mais terríveis da ditadura, em 1970-1971, um procurador de Justiça de São Paulo, de 48 anos, desafiou o medo que imobilizava o Brasil e levou a Justiça a condenar o delegado Sérgio Fleury e outros pelos assassinatos cometidos pelo Esquadrão da Morte. Fleury era o intocável guia da tortura e da repressão política no baronato ditatorial do general Médici, e às pressas inventaram uma lei para livrá-lo da prisão. O “atrevido ato” do procurador Hélio Bicudo, porém, serviu de ponto de partida e apoio para que, passo a passo, o País perdesse o medo.
Agora, em julho, antes de agosto chegar, Hélio Bicudo nos deixou aos 96 anos, encerrando uma vida de coerência pessoal, ideológica e política. Num país em que a política serve para municiar e ajeitar posições e fortunas pessoais, ele foi um dos modelos vivos a mostrar que tudo pode ser, apenas, uma questão de gosto, a qualquer instante ou mês, a começar por agosto. Fora disso, será quase como retroagir à “gripe espanhola” de 1918.
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