quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Em vez de remédio contra Aids, Brasil financia analgésico em Moçambique

Quem entra na Sociedade Moçambicana de Medicamentos (SMM), a única fábrica de remédios de Moçambique, dá de cara com um objeto em exibição dentro um cubo de vidro, sobre um pedestal. É um frasco de nevirapina 200 mg, componente de um dos tratamentos para a Aids. Pelo rótulo, sabemos que foi produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Brasil, e embalada no país africano. Validade: 05/2014.

Esperava-se que fosse um motivo de orgulho. Mas ali dentro estão as esperanças, vencidas e frustradas, dos dois países. Faz 14 anos que o Brasil apoia a criação dessa fábrica, destinada a produzir antirretrovirais - como são chamados os remédios que combatem o vírus HIV. É o mais longo projeto de cooperação do governo brasileiro na África, e o mais caro, com custo estimado em R$ 40 milhões.


Lula observa trabalhador operando máquina que embala medicamentos

Mas a iniciativa acaba de passar por uma transformação radical. Em vez de antirretrovirais, a fábrica produzirá paracetamol, analgésico comumente usado contra dor de cabeça e cólica. Para isso, contará com apoio técnico da Fiocruz e com um novo repasse de R$ 5 milhões do Ministério da Saúde brasileiro, aprovado no segundo semestre deste ano.

"Notícia boa é que não é. É triste para nós, mas não podemos fazer mais nada", desabafa Joaquim Govene, um dos moçambicanos treinados pelo Brasil para produzir medicamentos. "Nós não podemos fabricar antirretrovirais, mas pelo menos vamos produzir algo para a população."

O motivo principal da mudança é que a nevirapina, cuja tecnologia de produção o Brasil transferiu para Moçambique, ficou ultrapassada. Já foi muito importante no combate ao HIV, mas, à medida que o projeto da fábrica de antirretrovirais demorava para sair do papel, foi sendo substituída por outras drogas mais modernas e eficazes. Hoje, é raramente usada nos dois países.

"Produzir nevirapina é desperdiçar material, vai ser farinha", diz a médica Sheila Cassamo, responsável pela área de HIV da direção de saúde de Maputo, capital moçambicana. "Está obsoleta como droga", completa Adele Benzaken, diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle do HIV/Aids, do Ministério da Saúde brasileiro.

Jorge Mendonça é diretor de Farmanguinhos, unidade da Fiocruz responsável pela parceria com a SMM. Ele não participou da concepção do projeto, mas faz mea culpa.

"A indústria de medicamentos é muito agressiva. Um novo medicamento, uma nova abordagem, uma nova descoberta podem mudar o mercado completamente. Se fosse possível voltar atrás, talvez poderíamos não ter apostado tantas fichas de que essa seria uma fábrica para antirretrovirais. Tinha que ser uma fábrica para atender a saúde pública moçambicana."

Além da nevirapina, os planos eram que a fábrica produzisse outros dois antirretrovirais, mas isso não aconteceu. E se tivesse ocorrido, faria pouca diferença. Os dois também são pouquíssimo usados hoje.

Mendonça advoga pela importância do Brasil continuar financiando a fábrica: "O que está sendo investido lá não é nenhuma fortuna, é uma pequena contribuição para terminar esse projeto".

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