Durante vários dias deste outubro, Chico Caruso divertiu os leitores de O Globo apresentando o governador Pezão apreensivo pondo as mãos no fogo enquanto um debochado Sérgio Cabral, que o antecedeu no cargo, sorri atrás das grades.
Um dos mais conhecidos expedientes judiciários deste tipo era realizado do seguinte modo: se alegava inocência de alguma acusação, a pessoa era submetida a pegar uma barra de ferro aquecido até tornar-se vermelha e caminhar por alguns metros com ela na mão.
A mão era envolvida em estopa, lacrada com cera. Concluída a prova, o acusado era dispensado até que se passassem três dias, quando então a atadura era desfeita pela autoridade. Se a mão estivesse sem sinal de queimadura nenhuma, estava provada a sua inocência. Se, porém, apresentasse os ferimentos próprios do fogo, estava provada a sua culpa e a vítima era condenada à morte, em geral pela forca. Os sinais de queimadura ou a ausência deles eram interpretados como resultado de julgamento divino.
Como estas provas, assim como as execuções, eram espetáculos públicos de grande sucesso de público, quando se tratava de acusado cuja inocência era certa ou fortemente presumida por seus conhecidos ou amigos, dizia-se “por este, eu ponho a mão no fogo”. Se a culpa era reconhecida previamente, ou pelo menos pairavam muitas dúvidas da presumida inocência, ouvia-se o contrário: “por este, eu não ponho a minha mão no fogo”.
Apesar de ser invocado um tribunal divino, de juízo monocrático, proferido por Deus, a Igreja jamais aceitou o ordálio, cujo étimo provém da palavra latina ordo, ordem, de resto presente em muitas outras palavras do Português, como desordem, ordinário, extraordinário, subordinado, ordenar, ordenação, ordinal e outras de domínio conexo.
Desde fins do primeiro milênio, vários papas condenaram esta prática infame: Estevão VI, em 888; Alexandre II, em 1063; Inocêncio III, em 1215. Eles não só proibiram que o clero abençoasse, cooperasse ou endossasse o ordálio com sua simples presença ao rito macabro, como decretou sua substituição por outras duas práticas: o juramento e o testemunho.
Antes de ser utilizado o fogo como prova, foi utilizada a água, como se lê na Bíblia. Suspeita de adultério, a mulher era condenada a beber a água da amargura, provavelmente contaminada para puni-la: “Se tiver cometido uma transgressão contra seu marido, a água se tornará amarga, fará inchar seu ventre e consumirá sua coxa. Se for inocente, será livre e conceberá filhos” (Números 5, 27 e 28). Era um sofrimento tão doloroso que a mulher preferia confessar e ser condenada à morte de outro modo.
Pegar ferro incandescente, andar sobre braseiros, mergulhar em água suja e beber água contaminada eram algumas práticas de ordálio.
Bons observadores de usos e costumes, como escritores atentos, sobretudo cronistas, registraram o conluio entre autoridades corrompidas por culpados ricos ou poderosos, que armavam cena teatral para iludir o populacho, tomando o cuidado de fazer isso à certa distância da multidão para melhor obrarem o engano.
Não é exagerado supor que atualmente o ordálio a serviço de interesses escusos persiste disfarçado de voto por maioria em intermináveis discussões jurídicas sobre filigranas das leis. Advogados regiamente pagos, às vezes com o produto do roubo ou de outras ilicitudes de seus clientes, obtêm absolvições. E às vezes com voto monocrático, isto é, proferido por apenas um julgador.
Vários réus, pelos quais ninguém ousava pôr a mão no fogo, escaparam da cadeia ou de outras punições por meio deste ordálio moderno, envolvido entretanto nos ritos de cortes que não só devem ser honestas, mas também parecer honestas, como consagrado na jurisprudência da mulher de César, cunhada pelo próprio Júlio César ainda no século II a.C.
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