Homossexualidade não é doença, assim como a orientação sexual de uma pessoa é traço insuficiente para torná-la mais propensa a cometer crimes associados à pedofilia. Porém, é assim que muita gente, incluindo parlamentares, juízes, promotores e delegados, costuma pensar diante de casos de abuso em que a vítima é do mesmo sexo do abusador. Em 2013, por exemplo, durante uma das sessões da CPI do Tráfico de Pessoas, que investigava abusos sexuais de garotos no futebol, o deputado federal Severino Ninho questionou se um treinador, suspeito de estuprar e dopar adolescentes que alojava em seu apartamento, era homossexual, reproduzindo uma visão preconceituosa que perdura no meio futebolístico de que o abuso sexual de meninos tem a ver com homossexualidade, e não com uma prática criminosa.
Deturpações de conceitos e preconceitos se somam à cultura punitivista brasileira, que, em vez de apontar soluções para o problema, prefere mascará-lo ao alimentar uma sede insaciável por penitência aos réus – que não raro ganha contornos de sadismo. Evidentemente, tanto em crimes sexuais relacionados ao futebol quanto em qualquer outro caso que envolva crianças, é preciso diferenciar um abusador eventual do pedófilo, portador de um distúrbio de preferência sexual reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Nada impede que ambos, porém, cumpram suas penas previstas na legislação enquanto recebem tratamento e o devido acompanhamento psicológico, sobretudo após deixarem a prisão. E é exatamente o que está longe de ser uma praxe no Brasil.
Até mesmo em países que adotam pena de morte, como os Estados Unidos, condenados por crimes sexuais contra crianças, de qualquer gênero, passam por tratamento e enfrentam uma série de restrições no processo de reintegração à sociedade. Uma delas é não poder trabalhar em instituições que abrigam crianças. Por aqui, para ficar no exemplo do futebol, há pelo menos 23 casos de treinadores que já foram condenados por violência sexual que reincidiram no crime ou seguem trabalhando com garotos em escolinhas e clubes. No ano passado, em Pernambuco, um desses “profissionais” molestou o menino Denílson Teixeira da Silva, de 12 anos, que sonhava ser goleiro e acabou assassinado a pauladas ao tentar resistir aos abusos.
Na Alemanha, existe desde 2005 um programa nacional do governo que trata pedófilos em 11 clínicas especializadas espalhadas pelo país. Passam por tratamento tanto abusadores já condenados, que são assistidos durante e depois do cumprimento da pena, quanto indivíduos que reconhecem o próprio distúrbio e se apresentam voluntariamente às clínicas. O principal foco por lá é evitar novas vítimas, e não castigos movidos por uma desmedida sensação de impunidade. Por aqui, no entanto, ainda perdemos tempo discutindo projetos meramente discriminatórios como a cura gay e fechamos os olhos para o fato de que milhares de crianças continuam e continuarão sendo vítimas de abuso sexual. Nossa cultura punitivista, até o momento inócua no enfrentamento às verdadeiras causas de diversos tipos de violência, carece de profundo tratamento, não a homossexualidade.
A audiência pública desta terça-feira, na Câmara dos Deputados, tratará de um pacto firmado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com o Congresso Nacional, em que a entidade se comprometia a adotar 10 medidas para combater o abuso e a exploração sexual no futebol brasileiro. Passados mais de três anos da assinatura do termo, fruto de uma longa apuração da CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, antes da Copa do Mundo de 2014, a CBF ainda não implementou as medidas do acordo. Marco Polo Del Nero, presidente da confederação, foi chamado para a audiência, mas já adiantou que não poderá comparecer. Da CBF ao Judiciário, padecemos com instituições doentias, que se omitem diante dos problemas urgentes, de fato, enquanto se ocupam de questões surreais como a crença sem fundamento que confunde homossexualidade com enfermidade. Haja remédio para tantas feridas abertas.
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