quinta-feira, 8 de junho de 2017

Era uma vez na América do Sul

“E também faleceu, por
ter pescoço, o autor
da guilhotina de Paris

Noel Rosa e Orestes Barbosa, em "Positivismo"

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Original

Nenhum de nós dá conta de prever o desfecho do filme de terror a que fomos condenados, não se sabe bem por que ou por quem. O roteiro que nos enredou, caprichosamente tenebroso, alçou o mordomo ao posto de personagem principal, tornando mais difícil o exercício de antever os próximos lances. Por escassez de protagonistas, o trem fantasma de mau gosto desembestou sob o comando dos coadjuvantes. E como coadjuvantes são personagens rarefeitos, deles não se pode esperar nada, embora seja possível esperar tudo. A lógica da tensão dramática se esfarela, de tal sorte que estamos aqui nesse suspense um tanto dadaísta, ainda que aterrorizante.

De outro filme, no entanto, podemos saber o final. Se do nosso filme de terror do presente ninguém sabe o que virá, há outro filme cujo desfecho faz pensar. Aliás, em meio às incertezas escuras e reais, não há de ser má ideia falar um pouco de cinema. É melhor do que falar de clima, de inflação ou de futebol.

Esse outro filme é Era uma vez na América, de Sergio Leone. Entre um noticiário e outro sobre o Tribunal Superior Eleitoral, os Ésley Brothers e as malas pretas, vale a pena ver ou rever essa obra-prima. Temos ali Robert De Niro em boa forma, antes de sua fase atual de caretas em comédias baratas e publicidade de charcuterie brésilienne. Nesse filme de 1984, De Niro interpreta Noodles, um jovem delinquente de Nova York que rapidamente sobe na vida e vira um mafioso engravatado e rico. É uma atuação e tanto, mas eu não diria que, à luz (ou à sombra) do nosso presente de filme de terror, Noodles seja o personagem mais magnético de Era uma vez na América.

O tipo que realmente mais intriga no velho longa-metragem (229 minutos) é Max, interpretado por James Woods. Não deixa de ser muito curioso. Como outros que aí estão, em Brasília, dando umas cartas e recebendo outras, James Woods é coadjuvante. Seu nome aparece nos créditos em segundo lugar (o primeiro é De Niro). Não obstante, é dele o papel que mais se destaca aos nossos olhos aturdidos por falcatruas de colarinho-branco: Max, veja você, é um bandido que, para ser bem bandido, mas bandido mesmo, descobre que precisa dedicar-se à política.

(Volto a alertar: vou comentar aqui o final de Era uma vez na América.)

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Recapitulemos, então, a biografia (fictícia, naturalmente) de Max. Ele vive de pequenos furtos, brigas sanguinolentas, um ou outro tiro, um assassinato eventual, até que fica obcecado por um plano mais ganancioso: organizar um assalto ao Federal Reserve. Max quer porque quer roubar o banco e ninguém consegue demovê-lo da ideia. Teimoso, resolve pôr sua ambição em prática. A estratégia dá errado. A polícia fecha o cerco. Aí, o filme ganha outra velocidade e a sucessão dos acontecimentos segue uma escalada de thriller genial. Todos do bando são presos. Só Noodles consegue fugir da cidade, para retornar muitos anos depois.

Quando volta a Nova York, o personagem de De Niro encontra tudo mudado. Tudo, absolutamente tudo está diferente. Nesse ponto, o tempo narrativo dá outro salto. Agora, o andamento entra em outra dimensão. O fluxo da ação entra numa espécie de transe, sem que o espectador saiba se está diante de um prosseguimento linear da história ou diante de um delírio, um sonho, uma viagem alucinógena. Exatamente: uma viagem alucinógena, o que se explica facilmente.

Entre um crime e outro, Noodles frequentava um opiário chinês, onde tragava ópio num longo cachimbo, deitado numa cama de solteiro, ao lado de muitas outras camas de solteiro em que muitos outros clientes se entregavam ao mesmo programa. Nesse ambiente precursor das cracolândias de hoje em dia, Noodles afrouxava o colarinho, fechava os olhos, relaxava sobre o travesseiro e, com um sorriso quase em alfa, deixava a imaginação partir para longe da realidade e da pólvora.

É por isso que, no momento em que ele retorna a Nova York, a gente fica em dúvida se o que vem à tela não são os devaneios alucinógenos de Noo-dles. O que ele encontra em sua volta é um cenário em que a própria realidade parece alucinar para cumprir os seus desígnios mais malignos.

Noodles reencontra Max, que se tornou um político detentor de imenso poder e muito dinheiro. Morando num palácio de luxo e ostentação, Max virou dono de tudo o que queria roubar na juventude e seguiu acumulando, acumulando, a ponto de roubar até mesmo a namorada de seu antigo comparsa de juventude. Sua fortuna só não cresceu mais que seu desejo de roubar mais. Max é a imagem em alta definição do homem de sucesso que aparece em capas de revista.

Com esse filme notável, inesquecível, deslumbrante e aterrador – com o perdão do uso excessivo de adjetivos –, Sergio Leone propõe uma síntese original, terrível e cruel da política. Em Era uma vez na América, a política é a continuação do crime por outros meios: os meios lícitos, oficiais e refinados – ao que sigo me desculpando pela adjetivação prolixa. A política seria, enfim, o crime que se perpetra por meio da lei. Nada mais simples, nada mais óbvio. Você quer assaltar o banco central? Ora, elementar, basta virar secretário de Estado (quem quiser que veja ou reveja Era uma vez na América e tire a prova por si mesmo).

Mas ainda me falta falar da guilhotina (não sei onde estava com a cabeça quando deixei escapar aquela epígrafe lá em cima). É que temos visto muitas cabeças rolarem, cabeças descabeçadas. Pois se a política corresponde mesmo ao que sugere Sergio Leone, também os inventores da lâmina fria, da qual tanto se vangloriaram, terão seus dias de pescoço. Protagonistas, antagonistas, coadjuvantes, figurantes. Não vai sobrar ninguém. Ao que a palavra terror surge de novo. O terror é assim, a gente não sabe como termina.

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