Além disso, não conseguimos mais ouvir o outro. Pessoas que deviam estar acima de qualquer suspeita, por seu histórico comprometimento democrático, de Chico Buarque a Fernando Henrique, têm sido desqualificadas apenas por divergências de opinião.
No entanto, mais que nunca, a História nos desafia a clarear nosso pensamento. O sistema político-eleitoral em que vivemos não está atendendo às exigências democráticas e precisa ser regenerado. Se não conseguirmos ordenar as ideias sobre o que queremos e não queremos nesse campo, os espertalhões se aproveitarão para salvar a própria pele e nos deixar diante de fatos consumados, travestidos de leis pilantras que deverão nos reger.
Pelo menos alguns pontos terão de ser decididos já, uma vez que, a partir de outubro, não mais se aplicarão às eleições de 2018. Outros poderão esperar, menos premidos pelo calendário eleitoral. Mas é bom pensar que estarão no horizonte, a fim de que possamos saber para onde estamos indo.
Refletir sobre isso é tarefa coletiva. Construir conhecimento sempre é. Os cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach sustentam que a espécie humana é basicamente social e evolui num contexto de colaboração, como uma colmeia, em que o pensamento individual é limitado.
Temos a ilusão de conhecer coisas simples que usamos, da geladeira ao zíper, mas só temos ideias gerais a respeito. Para construí-las foi preciso somar vários saberes especializados e um histórico de tentativas e erros.
Como queremos então conceber sistemas complexos como o eleitoral (ou de saúde, educação, previdência, segurança pública) apenas repetindo superficialidades que não resistem a um exame? Apenas porque nosso grupo de pessoas numa mídia social reforça convicções baseadas em fé e não em fatos ou conhecimento? Vamos acreditar literalmente que a fé move montanhas? Ou vamos trocar ideias e somar pensamentos?
Pessoalmente, tendo a ser parlamentarista — entre outras coisas, pela eficiência de seu mecanismo de recall do chefe de governo e pela intensidade com que força a busca de consenso. Mas reconheço dois fatos incontestáveis. Com esses parlamentares que temos, é inviável. E sua adoção no Brasil já foi rejeitada duas vezes. Então, deixo de lado essa discussão agora. Mas isso não me impede de querer melhorar o Congresso.
Diminuir o número de partidos. E o de deputados. Acabar com suplentes de senadores como são hoje. Impedir coligações eleitoreiras. Eliminar o foro privilegiado.
Urgentíssimo é o barateamento das campanhas. Em vez de ser controlado, o financiamento por empresas foi proibido. Acabou. Como limitar o poder de outras “entidades” (igrejas, facções criminosas) nos bastidores? E como funcionaria um fundo público que Dilma triplicou e agora se propõe multiplicar por 5? Ou seja, 15 vezes mais do que era quando houve toda essa corrupção que estamos descobrindo.
Dinheiro dos nossos impostos. A ser gerido pelos caciques partidários, em paralelo a uma absurda lista fechada de candidatos? Raridade mundial em presidencialismo, como lembra a OAB-SP. E o eleitor, sem escolha, só poderá votar em quem os cardeais decidirem?
Como rejeitar e sair dessa enrascada? O mais lógico seria por meio do voto distrital, puro ou misto. O eleitor votaria em quem conhece, no seu bairro ou região. Mas isso só com emenda à Constituição — e PEC exige duas votações em cada Casa do Congresso. Para dar tempo, precisa começar já esse processo.
Nelson Motta sugere a possibilidade de candidaturas individuais independentes, sem partido. De que modo? Pode ser fecundo discutir isso. Várias democracias adotam esse sistema. Por sua vez, Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, surpreende ao propor acabar com a representação e adotar um sorteio de representantes, e deliberação digital contínua, em vez de eleição.
Tenho curiosidade de ver como esmiuçaria a proposta. Algo a se aproveitar? Há quem fale em plebiscitos frequentes. Dá para confiar? Se houver uma consulta sobre pena de morte, alguém duvida dos resultados?
Uma sugestão óbvia é baratear campanhas. Já estão mais curtas, mas seria bom se livrar de marqueteiros. Talvez ter debates frequentes na TV, em grupos pequenos de candidatos, sobre temas específicos: cada um expõe seus projetos e se compromete com um programa, em confronto com outros. Sem horário reservado a partidos.
Precisamos pensar em eleições sem espírito de vingança nem busca de solução salvacionista. Aproveitar a oportunidade de reflexões plurais, que podem viabilizar ações para melhorar a situação do país. E a vida de todos nós.
Ana Maria Machado
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