De algum lugar tiramos a memória da leveza. Já foi nossa. Habitou o nosso corpo, fez o chão doce sob os nossos pés. Foi uma flauta tocada de leve para a beleza do sol. E foi de noite, e foi boa. E teve a umidade justa do orvalho da manhãzinha. E o calor suficiente do sol. Tudo leve. Tudo bom. Temos essa memória, não é uma alucinação triste. Já a tivemos um dia. — Mas até parece que não.
Ainda conhecemos pessoas que acolhem, que são cariciosas, abraçam — abraçar é tão amoroso, funde tudo por um breve momento de diferenças mínimas. Há pessoas que abraçam verdadeiramente, trazem para rente de si um corpo às vezes pesado de tristeza. Esse é um momento de sorriso. Depois acaba, foi só um cumprimento, há mais na fila — e passa. — Não passa, não. Um dia abraçar já foi um modo de experimentar a unidade dos corpos e das almas na mesma alegria leve. Pode ser que hoje seja uma convenção, com tapinhas nas costas. — Duvido. Porque um dia já foi diferente.
Diz-se: Deus criou a Terra, e o diabo inventou o arame farpado. Normal. Aquele que une e Aquele que separa estão juntos desde toda a eternidade. São o eclipse um do outro. O problema não é o arame farpado, que exista. É que nós, humanos, gostamos das divisões do arame. E não nos importamos tanto (um pouco, sim, ou o Anjo nunca passaria) com que alguém se fira nas farpas. Ou mesmo fique lá, enredado sem saída, sangrando uma vida que não era para ter esse destino. Inventamos o orgulho de quem vive dentro das cercas e o desprezo diante dos que vagam de cercado em cercado, e não entram nunca. Os limites e fronteiras fizeram a vida pesada, o chão pesado para os pés. O mundo já foi grande e sem porteira. — Ou não.
Provavelmente, não. Talvez o peso da vida seja o que nos fixa na Terra que é a nossa, nossa casa e campo de batalha. Porque não fomos feitos para voar, mas para pôr pé ante pé na secura dos desertos e na alegria súbita dos jardins. Para pesar e ponderar — mas também para deixar partir, para a aventura arrojada. Mas nossos abraços protocolares têm memória. De algum tempo essa memória vem. Andarmos uns nos braços dos outros já foi em algum momento tão natural... Vamos de mãos dadas, escreveu um dia o poeta. Vamos de mãos dadas. Levemo-nos pelas mãos. Ou é isso mesmo que fazemos, mesmo quando nem o notamos? Irmos de mãos dadas é constatação ou esperança? — É esperança. E como podemos esperar o que já não conhecemos alguma vez? Aguardamos um retorno manso, quando o Anjo passa. Encantamo-nos com o súbito sorriso das crianças muito pequenas — tão frágeis! — que nos lembram o tempo em que sorrir era toda a nossa graça. — Ou não era?
Não sabemos. A vida já foi tão leve? Os Anjos já foram tão frequentes? Ou para sempre pariremos com dor e ganharemos o pão com a dor dos nossos músculos pesados? Ainda creio na bondade. Na Bondade. Às vezes é por um fio. Mas um fio segura o mundo. Acredito na leveza da vida para todos. Como se me lembrasse. Se já tivesse um dia sido assim. Não me digam que não. Ninguém sabe. Podemos apostar. Tudo. Ganhamos ou perdemos. Tudo. A vida, a leve e a pesada, não merece menos do que tudo. E desistir não é de verdade uma opção.
Marcio Tavares D’Amaral
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