Na semana que vem, em uma grande festa literária, o Hay Festival de Cartagena, escritores de diversos países estão convidados a repetir o gesto original de Lutero ao afixar numa igreja suas 95 teses propondo reformas às autoridades eclesiásticas. De minha parte, a proposta que faço se dirige à autoridade que me parece suprema: a consciência individual de cada um de nós.
Olhando a evolução do homo sapiens, constatamos que nos desenvolvemos a partir de duas atitudes que serviram como garantia para nossas condições de sobrevivência.
A primeira foi a do sujeito ativo. Frente aos tremendos perigos que ameaçavam a espécie num ambiente hostil, era indispensável uma ação rápida, não sujeita a dúvidas, hesitação ou paralisia. Se uma fera atacasse, o homem primitivo devia correr o mais depressa que pudesse. Subir em uma árvore alta, jogar-se ligeiro na água ou golpear o animal com o objeto duro e pesado mais ao alcance e com maior probabilidade de causar dano ao inimigo que ameaçava. Tudo em decisões rápidas, pouco mais que atos reflexos. A rapidez e a reação automática podiam ser decisivas para salvar a vida.
Passado o auge do perigo, os indivíduos que conseguiam escapar podiam então se dar ao luxo de passar à segunda atitude: a do sujeito reflexivo. Pensar sobre o que ocorrera. Comparar sua sorte com a de outros, menos afortunados, que haviam sido mortos ou atingidos pelo perigo. Recordar os movimentos observados em companheiros que também haviam escapado, graças a ideias diferentes das suas, mas igualmente eficientes. Mais que isso: foi possível aprender que havia uma potencialidade positiva no intercâmbio de experiências, na soma de reflexões, em estratégias conjuntas para enfrentar a ameaça comum. Se o sujeito ativo era importante para garantir a sobrevivência individual, logo se tornou inevitável reconhecer que o sujeito reflexivo se revelava fundamental para assegurar a sobrevivência do grupo.
Hoje em dia, com o desenvolvimento tecnológico, os meios digitais e uma rede de comunicação universal, esse intercâmbio de relatos, experiências e opiniões se oferece com uma amplitude e rapidez antes inimagináveis. Para aproveitá-lo em sua plenitude, precisamos ir além da reação imediata e automática de dar um simples clique ou curtida, escolher mãos aplaudindo ou uma carinha vomitando. É preciso sair dos limites do pequeno grupo que reage como se fosse um único indivíduo, ativo e militante, mas voltado apenas para si mesmo — como o primeiro momento daquele homem primitivo que tratava de sua sobrevivência pessoal, sem qualquer reflexão a partir de narrativas e experiências alheias, que permitiriam progressos para toda a coletividade.
Aprendemos com Hannah Arendt que, para dominar de maneira absoluta, o terror precisa se exercer sobre pessoas que estejam isoladas umas das outras. Por isso, uma das primeiras, mais fortes e constantes preocupações de todo governo tirânico é construir esse isolamento entre os cidadãos. Mais ainda: ela observou também que o súdito ideal para um domínio totalitário é sempre aquele para quem não existe mais a distinção entre fato e ficção. Ou seja, para quem desaparece a realidade da experiência. Ou então, aquele que perdeu a distinção entre verdade e falsidade. Quer dizer, para quem desapareceram os paradigmas de pensamento.
Para evitar que isso se produza, uma boa reforma interior sugere que cada um acolha e ouça atentamente o que os outros têm a dizer, em uma atitude reflexiva, procurando ver o que possa existir de verdadeiro e útil nessa contribuição, sem reforço de palavras de ordem, sem hostilidade prévia, sem belicosidade, sem desqualificação automática do pensamento alheio. E de novo se possa constatar, com o poeta Drummond, “como a vida é isto misturado àquilo”.
Ana Maria Machado
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