Na comédia “Hemorragia de mentiras médicas”, de Thomas Brown, escrita em 1697, tendo Londres como cenário, o médico é arrogante, um tanto hipócrita, e os boticários, gananciosos e desonestos. Poucos anos depois, o Colégio Real de Médicos e a Câmara dos Lordes divergiram sobre o caso Rose, um boticário acusado de exorbitar de suas funções ao prescrever e administrar medicamentos. Os argumentos dos médicos baseados nos danos relacionados com “desencorajar a Medicina e privar a nobreza de uma das profissões por meio da qual seus filhos podem subsistir” foram considerados antes como tentativa de preservação de privilégios do que preocupação do bem-estar dos pacientes. A decisão favorável a Rose constituiu uma das bases para o reconhecimento legal dos modernos médicos generalistas e farmacêuticos.
Lydgate (ilustração) |
A essa mesma época, o romancista Charles Dickens ficou fascinado com as possibilidades terapêuticas do hipnotismo. Wakley inicialmente manifestou uma curiosa simpatia pela técnica, logo depois, contribuiu para desmistificá-la. “The Lancet” publicou relatos de tentativas de cura, mas realizou avaliações públicas por juntas médicas, demonstrando a inocuidade do método, que foi decisivo para conferir-lhe credibilidade e torná-lo uma das principais publicações científicas do mundo.
No fim do século XIX e ao longo do XX, as sátiras envolvendo médicos e profissionais de saúde não deixaram de destacar a avidez e o despojamento de homens e mulheres dedicados a atender doentes. Atualmente, os elevados preços de determinados medicamentos e dispositivos médicos e comissões desafiam a ficção. Pode-se ganhar muito, não sendo bem formado e atendendo poucos e a assistência à saúde nucleia os negócios de imensos grupos econômicos. Embora não seja incompatível obter elevadas remunerações com o tratamento de pobres e se evidencie facilmente que os atuais médicos não pertencem à nobreza, predomina a seleção dos mais aptos a pagar — a menos que as políticas públicas afirmem direitos sociais. Muros desfeitos por uma história de dedicação a uma medicina e oferta de medicamentos para todos foram reconstruídos.
As vitórias eleitorais da rejeição ao Obamacare e das propostas de filas especiais para pacientes em várias cidades no Brasil servirão como material de edificação de barreiras mais sólidas de acesso, inclusive a pesquisas e inovação. Certamente, a natureza política do “enorme, bonito e poderoso muro na fronteira sul”, prometido por Trump, seja como metáfora ou ação concreta, é distinta das propostas brasileiras de tratamento de saúde diferenciado para os pobres. Sobre os cinco milhões de mexicanos ilegais pesa a ameaça de deportação imediata. Aqui está valendo a promessa de resolução dos longos tempos de espera para consultas, exames e internações.
Pelo sim ou não, um ponto comum a muitos dos defensores de levantamento de muros na saúde é o modelo Lydgate. Pretendem que reais médicos, bem formados praticantes da Medicina baseada em evidências deem um jeito de consertar a bagunça no lado rico e no pobre. Fica assim: médicos-cirurgiões-boticários, julgados como responsáveis individualmente por produzir intervenções desnecessárias e receber percentagens de prescrições, seriam controlados ou estimulados a seguir bons exemplos dos que retornaram à boa e velha clínica. Caricaturas de Lydgate, estão à frente de grandes negócios movidos pela interação entre os planos de pré-pagamento, os fundos de investimentos e os médicos intervencionistas. As contraditórias tentativas de aproximação do mundo empresarial à imagem do médico idealista são dignas de nota, mas não fazem jus ao personagem. Sem drama, sem a luta contra a pobreza, a compreensão dos processos saúde-doença e possibilidades de interrompê-los, sem a perspectiva de superar as injustiças na saúde, não haveria Lydgate na ficção e Wakley e seus sucessores na realidade.
Ligia Bahia
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