Eu estava em Londres, em 1967, quando saiu o “Sgt. Pepper”, dos Beatles. Havia em King’s Road uma espécie de comício nos olhares, uma palavra de ordem flutuando no vento, “blowing in the wind”, como cantava Bob Dylan. O mundo careta tremia, ameaçado pelo perigo do comunismo e pela descrença alegre que os hippies traziam.
A revolta da caretice começou nos anos 80. Seu prenúncio foi a morte de John Lennon, assassinado por um psicopata. Foi o sintoma inicial.
Depois, nos anos 90, com o fim da Guerra Fria, pareceu-nos que os Estados Unidos iam derramar pelo mundo seu melhor lado: a democracia liberal – pois achávamos que a liberdade era inevitável, quase uma necessidade de mercado. Com o fim espantosamente súbito da União Soviética e com a chegada de Bill Clinton ao poder, tivemos realmente uma década de modernização e de entusiasmo com o futuro. Mas essa alegria se esvaiu aos poucos – os efeitos colaterais do fim da Guerra Fria estavam só começando, como, por exemplo, o advento terrorista.
Com a chegada dos republicanos ao poder com Bush, a caretice internacional se revigorou. Essa máfia de psicopatas queria se vingar do desprezo que sofreram nos anos 60, se vingar do vexame de Nixon e Watergate, se vingar dos Beatles, dos Rolling Stones, dos negros, da liberdade sexual que sempre odiaram. Imaginem Bush, Karl Rove ou Rumsfeld diante de um Picasso, ouvindo “free jazz”. Eles nos deixaram a “herança maldita”: o mercado global insensato, a destruição do Iraque, o Afeganistão, o Ocidente como cão infiel do Oriente.
Hoje, a política mundial virou um balé impotente, com a razão humilhada e ofendida, para desespero dos que acreditavam num futuro iluminado. Em um primeiro momento, isso nos dá o pavor do descontrole racional sobre o mundo: “Ah... que horror... O humano está se extinguindo, a grande narrativa, o sentido geral das coisas...”
Vladimir Kush |
Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a web de grafites delirantes. Talvez esse excesso de “irrelevâncias” esteja produzindo um acervo de conceitos “relevantes”, ainda despercebidos. Talvez esteja se formando uma nova força vital, uma nova produção de subjetividade, um agente formador de crescimento no mundo que ainda não está claro. Não sei em que isso vai dar, mas o tal futuro chegou; grosso, mas chegou.
A rapidez dessas mutações nos dá frio no estômago, mas a vida mesma dará um jeito de prevalecer, e talvez esse atual fantasma que assombra os metafísicos esteja nos libertando de antigos “sentidos” tirânicos, trazendo uma nova forma de aventura existencial e social, justamente por causa da desorganização da “ideia única”. Sistemas éticos ou racionais surgirão dos microchips, da tecnologia molecular, e não o contrário. Esta é a caricatura: as orelhas vão tender para celulares; os olhos, para telas de cristal líquido; e os cérebros, para chips com bilhões de gigabytes, todos feitos no Silicon Valley.
A descrença na política aumentou, as religiões estão florescendo, e o irracionalismo (mesmo disfarçado de sensatez) resistirá bravamente; mas talvez os avanços científicos possam um dia dissolver os fanatismos e as massas submissas a deuses. Sempre haverá o desumano; o pós-humano existirá? Creio que o humano vai prevalecer sempre, para além de uma ficção científica metafísica.
Os jovens de hoje querem alcançar uma forma de identidade alternativa e não almejam mais o “Poder” que está em mil pedaços. Há uma aceitação do mundo como algo irremediável, mas sem conformismo. Antes, lutávamos contra uma realidade complexa, sonhando com utopias totalizantes. Era o “uno” contra o “múltiplo”. Hoje, é o contrário; a luta é para dissolver, não para unir; luta-se para defender o vazio, o ócio possível, luta-se para proteger o “inútil” da arte, o que não seja “mercável”.
Desunificando-se em forma de uma grande esponja, em vazios, em avessos, em buracos brancos que vão se alargando à medida que a ideia do tecido da sociedade “como um todo” se esgarça. Não há mais “células de resistência”; apenas “buracos de desistência”. Agora, os novos combatentes não sonham com o absoluto; sonham com o relativo. E isso pode ser o novo rosto da humanidade se formando. Desculpem o “papo cabeça”, mas creio que um tempo diferente de tudo que conhecemos já começou. Intelectuais deliram com o tempo pós-humano. Mas a própria ideia de “pós” já é antiga. De qualquer forma, talvez o tal “pós-humano” seja interessantíssimo, até divertido. Será que vamos viver dentro de um vídeogame planetário? Não sei... Mas é mais estimulante do que o melancólico lamento pela razão que não chega nunca...
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