A lei, na república das bananas e das caxirolas, dobra-se aos imperativos da ordem – ou melhor, da velha ordem ameaçada. Medina Osório repetiu orações patéticas, mas cunhadas para funcionarem como teses jurídicas respeitáveis: "Se violou ou não a Constituição, é uma matéria interna corporis. O Senado tem o direito, em tese, de errar por último." Tradução: o Planalto enuncia o paradigma de que a Constituição é "matéria interna corporis" da elite política. Os destinatários do recado são os ministros do STF. Senhores juízes, não subvertam a ordem em nome da lei!
O fatiamento da Constituição obedece a dois propósitos. O primeiro é a lenda petista de que o Senado reconheceu a natureza golpista do impeachment ao preservar os direitos políticos de Dilma. Seus arautos, pensadores em missão partidária, zombam da inteligência do público, obliterando o fato de que a maioria dos senadores votou pela inabilitação da ex-presidente. Bem mais relevante é o segundo: subordinar o texto constitucional a arranjos parlamentares de ocasião. Dezenas de figuras notórias de diversos partidos, na situação ou na oposição, acalentam planos de reciclagem política amparados no paradigma de Medina Osório.
Creio que Temer, um suposto notável constitucionalista, tem pouco com que se preocupar. Nas suas calculadas entrevistas em off, docemente constrangidos, os ministros do STF confessam que subscreverão o esbulho. De olho nas próprias biografias, registram que Lewandowski passou a Constituição num triturador de papel usado. Porém, de olho numa ordem que prezam mais que a lei, advertem para a precedência do "direito do Senado". Um observador atento, mas ingênuo, anotará a contradição: esses são os mesmos juízes que interferiram nos detalhes arcanos dos trâmites regimentais do processo do impeachment, sem nunca invocar o "direito da Câmara". Já um observador cínico concluirá que, para o STF, acima da Constituição, encontra-se o Palácio.
Manifestantes, palavras de ordem, vidraças partidas. O ruído nas praças confunde os sentidos, sugerindo uma ilusória radicalização. De fato, eles não querem "Diretas, Já!", mas um discurso de campanha –ou, nas franjas, uma reunificação da militância à esquerda do lulismo. O governo pende no fio do TSE, cujos juízes arrastam às calendas o processo sobre o financiamento eleitoral da chapa Dilma/Temer, protegendo os interesses vitais do Palácio. Significativamente, os tribunos das ruas permanecem calados diante da infinita procrastinação. É que Temer oferece, afinal, um produto em alta demanda: a restauração da ordem.
Definindo a transição em curso, FHC selecionou uma metáfora certeira, mas plena de implicações ambíguas. "A situação atual é como se fosse uma pinguela. Não é uma ponte, é uma pinguela. Mas, se quebrar a pinguela, cai no rio." Ok: "pinguela" é o governo Temer e "rio", a tal da catástrofe. Mas quem, exatamente, "cai no rio" caso a ponte precária não resista? "A nação" –eis a resposta clássica, que identifica a sociedade inteira à sua elite política. No altar dessa "nação", o STF sacrificará o contrato constitucional, declarando-o "matéria interna corporis" do Senado. Bananas. Caxirolas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário