segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Uma mão suja a outra

Sistemas de saúde modernos são complexos de serviços e indústrias, instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, regidos por pesquisas, patentes e regras de propriedade intelectual.

Os tempos nos quais médicos e boticários vendiam pílulas de vida e tônicos fortificantes eram outros. Não havia assepsia, anestesia, os hospitais denominavam-se casas de morte, e as condições de pagamento de cuidados eram similares às do comércio varejista. Ricos (especialmente a aristocracia inglesa) eram atendidos por médicos particulares, em suas casas, e os pobres, por médicos-escravos e curandeiros. Tratamentos baseados em sangrias não curavam, poderiam apressar a morte de doentes de todas as classes sociais.

As mudanças foram radicais, as possibilidades de resolver efetivamente agravos e doenças, de prestar cuidados prolongados para condições crônicas, deixaram no passado as relações horizontalizadas entre compradores e vendedores, profissionais de saúde, pequenas clinicas e hospitais, pagamentos relativamente módicos por tratamentos de curta duração.


No Brasil, esse processo de modernização adquiriu feições singulares. O reaproveitamento de cateteres para procedimentos cardíacos, denunciado no “Fantástico”, é resquício da transformação que não se completou. São procedimentos médicos inovadores pagos por um esquema de rateio semissecreto, mas consentido. Os acordos são conhecidos, exceto pelos pacientes; diminuem custos para os planos; e tornam os valores de remuneração para os profissionais mais atraentes. Relacionamentos paralelos com empresas de planos, fabricantes e distribuidores de materiais cirúrgicos, órteses, próteses e medicamentos são expedientes de reuso também do jeito antigo de cobrança para a difusão de tecnologia de ponta. Os valores envolvidos são incomparavelmente mais elevados do que os pagos para os médicos até o fim do século XX, as contas são apresentadas para pagadores institucionais que atuam em nome dos pacientes. Mas, parte da antiga prática da recompensa individualizada, agora sob a forma de comissionamento, foi mantida.

O escândalo dos cateteres separou didaticamente os componentes antigos e modernos do sistema de saúde. Os pacientes não decidiram usá-los, seguiram recomendações profissionais, muito menos optaram por material reutilizado. Ninguém perguntou se o consumidor gostaria de adquirir um produto de segunda por preço de ocasião. A grande empresa de plano, hospitais considerados de excelência e fornecedores disseram não saber de nada ou não serem responsáveis. Sobrou para os médicos.

O caso ocorreu no circuito restrito que une pessoas que têm plano caro e unidades de saúde que não internam pobres. Diabruras na saúde, que deveriam ser consideradas obsoletas e desrespeitosas com as expectativas dos cidadãos, não ficam por aí. A alternativa predileta de parcela de integrantes das redes informais de comercialização de material médico-cirúrgico é a venda da promessa de uma assistência básica em troca de retribuições pré-pagas baratas. A ideia carece de fundamento técnico, o tamanho do bolso não determina o problema de saúde, diagnóstico e tratamento e tem parentesco com o pacto de reuso.

Pressupor que recursos da saúde possam ser alocados para fazer mais com muito menos qualidade, ou precisamente fazer mais com o mesmo, cheira a mofo. O odor exala da velhaca desculpa de apelar para expedientes sub-reptícios em função das condições de atraso do país.

Empresários da saúde, que faturaram R$ 140 bilhões no ano passado, têm força social para impor interesses, conferem-lhes estatuto de política pública. Influenciam parlamentares, ministros de Estado e contratam porta-vozes entre executivos que ocuparam cargos públicos no modelo portal giratório (sai da empresa, vai para o governo, volta para a empresa e sempre mantém um pé dentro e outro fora). Esse time fica encarregado de apresentar propostas para remendar a legislação e afirmar que o Brasil não está e nunca estará preparado para ter um sistema de saúde moderno.

Estabelece-se a polêmica, as normas ficam como estão, enquanto o boi vai passando. Planos relativamente mais baratos, falsos coletivos e de adesão a entidades completamente alheias aos indivíduos que os contrataram estão sendo comercializados. Atualmente, os porta-vozes dos planos baratos, animados com os discursos privatizantes do ministro da Saúde interino, querem tentar passar a boiada, copagamentos e franquias elevadas, e a regulamentação da dupla porta nos hospitais públicos. Os clientes pagarão mais, e as empresas de planos de saúde economizam usando a rede pública hospitalar.

Pretendem vender um plano de pré-pagamento baseado na responsabilidade da empresa privada pelo Melhoral e copo d´água, e na transferência para o SUS do atendimento das complicações das arboviroses, hipertensões e diabetes, saúde mental e cânceres. A chance de planos baratos darem certo em termos de melhoria das condições de saúde é zero.

No Chile, na Colômbia e no México, proposições mais sofisticadas, por exemplo, propiciar coberturas para queimaduras de segundo grau, mas excluir as de terceiro, provocaram crises políticas e ações severas das supremas cortes contra as restrições de acesso. O que se faz com um paciente que tenha queimaduras de segundo e terceiro grau simultaneamente? Porém, a probabilidade de alavancar negócios e fortunas é elevada. Nesse setor, não se joga para perder, é tudo caso pensado.

Os movimentos para tornar plano barato um tema da agenda política têm direção: afirmam o privado como prioridade pública. Vai que alguém para, pensa e conclui, como o governo de centro-direita da Irlanda, que a melhor resposta para o sistema de saúde no contexto de crise econômica é cortar os subsídios públicos para planos privados. Vai que o destino do Brasil não é atraso, é a democracia, a transparência e a igualdade.

Ligia Bahia

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