domingo, 13 de dezembro de 2015

Apesar de vocês

“Pensei que o Roberto Carlos tivesse o direito de preservar sua vida pessoal, parece que não…Também me disseram que sua biografia é a sincera homenagem de um fã. Lamento pelo autor, que diz ter empenhado 15 anos de sua vida em pesquisas e entrevistas com não sei quantas pessoas, inclusive eu. Só que ele nunca me entrevistou.” (Chico Buarque de Holanda, O Globo, 16/10/2013)

Nasci em Botafogo, mas tive uma afortunada infância em Milão, e só voltei ao Rio pela determinação de papai em adaptar Perdoa-me Por me Traíres para o cinema. Somente então, após ter aceitado escrever a música tema do filme, Chico Buarque passou a existir para mim.

Claro, demorei para contemplar a infinita beleza de “Mil Perdões”, principalmente quando interpretada por Gal Costa, mas não foram poucas as minhas visitas ao longínquo sítio no Recreio dos Bandeirantes, onde o grande músico, ainda por cima tricolor como eu, recebia convidados para renhidas e tecnicamente sofríveis peladas.

Felizmente o tempo passou, aprendi que ao Recreio não se vai, e que torcer pelo Fluminense não assegura o caráter de ninguém. Quanto a Chico, apesar de ser um completo perna de pau, faz por merecer um paralelo com Diego Armando Maradona; em seu métier é inegavelmente um craque, mas como figura pública não vale nada.

Pergunto, caso fosse realizada hoje, qual seria o resultado de uma pesquisa sobre os grandes pecados do brasileiro? O cardápio é vasto, mas convenhamos, dada a escalada de falcatruas a que o país tem sido submetido nos últimos anos, muito provavelmente o tema corrupção ganharia destaque.

Ainda assim, mesmo dando razão ao senso comum, não conseguiria deixar de mencionar nossa mania de regalar imunidade moral a artistas, desportistas, e figuras de destaque em geral.


Soa como corruptela do você sabe com quem está falando?, e no entanto é fundamentalmente uma concessão não solicitada. É lamentável constatar, mas nos regozijamos em outorgar salvo-condutos para que estes seres, em teoria especiais, existam fora dos próprios muros que nos delimitam.

Ironia das ironias, um gesto de gratidão, até mesmo de devoção, a expressão ah, mas é fulano, fulano pode tudo, acaba revelando o pequeno déspota dentro de cada um de nós.

Ranzinzice minha? Má vontade? De forma alguma, extrapolar a habilidade do sujeito em sua área de atuação, principalmente quando esta emociona, é muito compreensível e não acontece somente por aqui. Exageramos na dose e fazemos mal a nós mesmos, porém, quando construímos uma redoma em torno de quem é visto como exemplo.

Se a letra de uma música deixará de ser brilhante, caso seu compositor flerte com ideias autoritárias, como por exemplo apoiar a censura prévia de biografias não autorizadas? Certamente não. Por outro lado é compreensível, para não dizer justo, e até mesmo justíssimo, que uma atitude tão detestável provoque antipatia e desilusão no grande público.

O mesmo vale para artistas que endossem um governo comprovadamente corrupto, responsável não só pela má gestão do país, mas também por ensejar ideologias nocivas para o seu futuro. E por que cargas d’água não poderiam ser criticados? Afinal de contas, se cafunés não são poupados quando estes mesmos emitem opiniões consideradas válidas, ou incentivam causas sociais importantes, por que as críticas deveriam?

Chafurdar em obviedades seria desnecessário, tanto a respeito deste viciado mainstreamque abençoa convertidos à esquerda e demoniza os demais (Regina Duarte que o diga), quanto sobre o direito que todos temos de defender nossas idéias e posicionamentos. Todos, inclusive este autêntico Curupira do universo progressista, o intelectual.

É ao chancelar a impermeabilidade de alguns, em tempos cada vez mais abertos ao debate, que a coisa toda não apenas perde o sentido, como beira à injustiça.

Se não é fácil separar a pessoa pública do gênio, podem ter certeza, amalgamá-los é definitivamente perigoso.

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