A história da Humanidade corre paralela à dos rios. Quase todos os grandes rios geraram ao longo das suas margens grandes cidades. “Quem ofende um rio, ofende Deus” — diz um provérbio africano. Quando um rio morre, morre tudo o que há nele, e todo o chão que ele atravessa. Surpreende-me que a tragédia do Rio Doce não provoque mais emoção e mais revolta, quer dentro, quer fora do Brasil. A mim chocou-me, como o pior dos ataques terroristas.
Fotos sobre a chegada da lama da Samarco ao mar que ilustram a edição de hoje podem ser acompanhadas aqui |
Impressionou-me o depoimento de uma mulher do povo Krenak: “O rio já sabia que ia ser morto”, disse ela: “Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando, fazendo barulho. E minha mãe chorando junto”.
Se o rio conhecia o seu destino, quem o matou também deveria conhecer — e com décadas de avanço.
A boa notícia é que os rios são muitíssimo mais resistentes que as pessoas. A História mostra que havendo vontade política, e meios para tal, é possível ressuscitar rios biologicamente mortos. Lembremos o que se passou com o Tâmisa. No século XVI, a poluição do Tâmisa, ao atravessar Londres, era já tal que a população evitava consumir a sua água. Em meados do século XIX, após duas grandes epidemias de cólera, foi construída uma rede de captação de esgotos que atirava os dejetos da cidade alguns quilômetros a jusante. O rio ganhou então a alcunha de “The Great Stink” (O Grande Fedor). Nos anos 50 do século passado, quando já não havia nem um peixe nas águas do Tâmisa, surgiram as primeiras estações de tratamento de esgotos. O aparecimento de salmões, duas décadas depois, causou comoção e confirmou que era possível devolver a vida ao rio. Hoje não só há salmões e mais de uma centena de outras espécies de peixes, como também focas. Até golfinhos se arriscam, vez por outra, a visitar a capital inglesa. Em 2006, uma baleia perdida, com cerca de cinco metros de comprimento, morreu durante uma tentativa de resgate, após ter subido o rio até a Ponte de Battersea, no centro de Londres.
O fotógrafo e ambientalista Sebastião Salgado fala em três décadas para recuperar o Rio Doce, e numa operação que custaria ou custará — vamos escrever “custará” — perto de R$ 100 bilhões. São números enormes, mas, ainda assim, talvez pequem por defeito. Salgado acredita que as empresas envolvidas na morte do rio pagarão, sem discutir, os custos da sua recuperação. Esperemos que sim. Não pagarão, isso é certo, as vidas destruídas das populações ribeirinhas e as culturas e tradições que se irão perder. Os custos de toda esta imensa tragédia ainda mal podem ser avaliados.
Respondendo à pergunta de um jornalista, Sebastião Salgado recusou-se a atribuir responsabilidades a uma empresa em particular, dizendo que deveríamos questionar, sim, o nosso modo de vida. Tem razão; só não tem a razão toda. É preciso investigar, responsabilizar, julgar e condenar. E é preciso também que comecemos a questionar o nosso modo de vida. Se o nosso modo de vida leva à morte de rios, então nem é um modo de vida, é um modo de morte.
Em menino eu tive um rio. O meu rio era pequeno e manso e tão humilde que nem sequer usava um nome. Mas, como o de Alberto Caeiro, era mais livre e maior que qualquer rio do mundo. Era tão grande que ainda hoje deságua em mim e me alimenta, com o mistério das suas areias movediças, o milharal alto onde brincávamos de esconde-esconde, o grave alarido das rãs, o cantar dos pássaros, e todos os sonhos que erguemos junto às suas margens. Acho que, para uma criança, ter um rio é tão importante quanto ter um cachorro. Os rios são laços de água que nos prendem ao chão da nossa infância. Os rios, como sugerem os versos de Langston Hughes, aprofundam-nos a alma.
José Eduardo Agualusa
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