Nesses dias, um episódio que não alcançou o destaque merecido reafirma o que ficou trivial. Corre, em segredo de Justiça, uma investigação. E uma CPI, com oito membros, de um total de 11, escalados para enterrá-la rapidamente. Rejeitam-se requerimentos e esclarecimentos. As convocações, mesmo aprovadas, não têm data marcada para se realizarem. Quer dizer, uma encenação que humilha os próprios senadores.
A documentação do caso é blindada na CPI para que seja rifada da melhor forma. O STF, guardião último da República, garantiu aos principais acusados o direito de permanecerem em silêncio quando questionados. As pessoas que embolsaram mais de R$ 550 milhões se beneficiam de segredo de Justiça mais rigoroso. A mídia está, assim, amordaçada. A relatora da CPI, senadora Vanessa Grazziotin, indicada por Renan Calheiros, antecipou que encerrará o relatório nos próximos dias, apresentando a tradicional pizza brasiliense. Repete-se o vexame da CPI do petrolão, anteriormente do mensalão e de todas as que ocorreram nos últimos 15 anos.
O dever de apurar e propor medidas saneadoras, para que as práticas não se repitam, é levado na contramão da seriedade. Os parlamentares escalados aproveitam para retribuir aos investigados o financiamento da última campanha e garantir o próximo.
A CPI do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) envolve uma traficância de R$ 19 bilhões e propinas apuradas de R$ 578 milhões. O chefe da quadrilha, segundo a Polícia Federal, é um tal de José Ricardo da Silva, de Belo Horizonte, que se mudou para Brasília e ficou milionário no cargo de conselheiro do Carf, exercido vendendo consultorias paralelamente. A indicação dele seria do presidente da Fecomércio de Minas.
Ele tem pouco mais de 40 anos. Da condição de desempregado, passou a raposa em farto galinheiro e conseguiu, em curto prazo, a nomeação de mais quatro conselheiros do Carf, pescados entre irmãos e parentes. A família passou a dominar o ente às claras do dia, com pleno conhecimento do Ministério da Fazenda. O tal José Ricardo, segundo a PF, ganhou status de pessoa entre as mais importantes da República, extorquindo grandes grupos econômicos na emissão de pareceres complacentes que enxugavam multas, por vez descabidas, mas embaraçosas.
Adquiriu, em quatro anos, uma penca entre as mais valiosas mansões do Lago Sul de Brasília e nelas registrou uma rede oficial de empresas de consultoria tributária, que deram recibo pelas facilidades vendidas nos julgamentos de recursos bilionários em que atuava como julgador. Colocou de sócios os irmãos e parentes, depois nomeados conselheiros no Carf, dividindo o butim e destinando-o à compra de títulos, carros, imóveis e bens de luxo ostensivo.
A PF levantou, com ajuda do Coaf, que tem a obrigatoriedade de sinalizar operações atípicas, que mais de R$ 578 milhões já tinham entrado e saído das contas bancárias dos conselheiros do Carf ligados a José Ricardo da Silva. Os compradores das facilidades são grandes e sólidos grupos econômicos, como Gerdau, JBS, Bradesco, HSBC, Safra, Light, Cemig, várias montadoras de veículos, todos acossados por autuações bilionárias da Receita Federal em decorrência de aproveitamento de ágios permitidos pela Lei 10.637/2002.
Resta entender como grupos dessa importância, alguns até com participação pública, auditados e fiscalizados pelas melhores empresas de consultoria, teriam entrado em barco tão furado, arriscando multas de bilhões num planejamento tributário. Na realidade, as operações eram autorizadas pela Lei 10.637/2002 (assinada por FHC), possibilitando lançar provisões como despesas, quer dizer, diminuir o Imposto de Renda a pagar.
Criticável ou não, a lei ficou em vigor e se consagrou, entre 2003 e 2006, e consolidou-se como boa prática. Quase irrenunciável quando concorrentes, em solo brasileiro, a utilizavam, capitalizando-se e reinvestindo em expansão. Desencadeou-se uma corrente de adesões ao previsto na Lei 10.637.
Interessante seria a CPI mostrar como essa corrente de operações, em seguida autuada como “sonegação” tributária, fez a riqueza de empresas de consultoria controladas por parentes de ocupantes de cargos públicos que, com um pé dentro do Estado e outro fora, operaram o planejamento (redução de impostos) tributário, cobrando valores de cerca de 10% sobre as vantagens tributárias auferidas pelos contribuintes. Mas, quando o filão de lançamentos se esgotou, sem mais interessados à vista, a Receita Federal, usando-se de uma interpretação interna, passou a considerar ilegais as operações previstas na Lei 10.637. Abriu uma delegacia especializada em fiscalização e autuou quem adotou o ágio, outrora legal. Iniciava-se aí uma ação reversa.
O Carf, que antecipa os recursos às instâncias do Judiciário, passou, assim, a “julgar” o que era justo ou injusto à luz da confusão criada ad hoc no meio das reviravoltas interpretativas que fizeram a fortuna de figuras obscuras.
Parte dos membros do Carf é nomeada pelo Ministério da Fazenda, e outra, por entidades privadas. Daí José Ricardo da Silva passou a ser quem dava as cartas e vereditos, exatamente a quem lhe pagava “honorários”.
Justa ou injusta, a Lei 10.637 existiu, e sua dubiedade permitiu a festa de figuras como José Ricardo, arrombando o erário e gerando o caos no sistema.
A CPI, que deveria revelar o caso, se silenciará sobre, e o que apodrece o Estado brasileiro continuará sem emendas.
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