sábado, 28 de novembro de 2015

A coreografia das trevas

Millôr Fernandes escreveu certa vez que “tarado é uma pessoa normal surpreendida em flagrante”, sugerindo que o ser humano, na sua dualidade, abriga zonas de sombra que, em alguma medida, o levam a práticas e desejos inconfessáveis.

“Se as pessoas pudessem ler o pensamento umas das outras, ninguém se cumprimentava”, resumiu Nélson Rodrigues.

O preâmbulo vem a propósito do senador Delcídio do Amaral, líder do governo, flagrado esta semana em prática, que, embora obscena e criminosa, não é estranha a quem circula no meio político – hoje e em qualquer tempo, aqui e em toda parte, mas hoje, convenhamos, mais aqui que em qualquer tempo ou qualquer parte. Que o digam os investigadores da Lava Jato.

A coreografia das trevas (Foto: Arquivo Google)
A História mostra que a saga humana se decide mais nos bastidores e subterrâneos que no palco iluminado dos plenários e tribunas. Prevalece, frequentemente, a coreografia das trevas.

Delcídio foi, digamos, ao banheiro sem perceber que a porta estava aberta. Suas excreções morais foram captadas por um gravador – e foi essa circunstância, providenciada previamente por seu interlocutor, Bernardo, filho do ex-diretor da Petrobras, Nestor Cerveró, que deflagrou o desastre em que está metido.

Não fosse isso, e teria saído sorridente da conversa, exibindo todo o prestígio de seu cargo e reputação, na certeza de que cumprira apenas mais um ato rotineiro do que se convencionou chamar de “negociação política” - ou quem sabe “missão política”.

Ele, de fato, era tido, por aliados e adversários, como um grande articulador; daí ser o líder do governo.

A reação no meio político evoca mais uma falha técnica que moral. Lula chamou-o de “imbecil” e classificou de “burrada” o que fez (desmentiu posteriormente, mas há diversas testemunhas de seu desabafo, segundo a Folha de S. Paulo). Foi, em síntese, um amador. Rui Falcão, presidente do PT, limitou-se a dizer que não se solidarizava pois “ele não estava em missão partidária”. Ah, bom.

Não houve, nos dois casos, condenação moral. No próprio Senado, que não teve como revogar a prisão, seus colegas confessavam estar constrangidos, mas ressaltavam ser ele um grande sujeito, um amigão e parlamentar competente.

Não era momento para elogios, de onde se deduz que, acima da condenação, ouviu-se um lamento – e um sinal preocupante de que a taxa de imunidade parlamentar perdeu substância. Houve ainda quem votasse por sua libertação: 13 senadores, ironicamente o número da legenda do PT, partido do condenado.

A presidente Dilma, informam os jornais, estaria preocupada – afinal, era o seu líder - com “as mentiras que ele poderá dizer”, pondo assim em cena um inédito desmentido prévio.

A preocupação, com certeza, é outra: é com as verdades que, em circunstância extrema, quem já perdeu tudo poderá revelar, em busca de atenuar sua pena. A Lava Jato tem levado à delação premiada gente habituada a conviver com o sigilo.

Delcídio, que deverá perder o mandato de senador, não é um político qualquer: era o líder não do PT, mas do governo – amigão do Lula e da presidente. Encontrava-se com Lula semanalmente. Por isso, deixa uma dúvida no ar: estaria em missão pessoal ou, digamos, política?

Afinal, o que engendrou – o silêncio e a fuga de um detento que é uma caixa preta de Dilma e Lula nos escândalos da Petrobras – não interessava apenas a ele, Delcídio. E qualquer investigação policial parte sempre de uma pergunta: a quem interessa o crime?

Entre as “falhas técnicas” cometidas pelo senador, uma selou o seu destino: a de ter se referido nominalmente a ministros do STF, o que resultou no rito sumário de sua prisão.

Ele, na gravação, tenta convencer o filho de Cerveró de que conseguiria emplacar um habeas corpus, pois tinha prestígio com alguns ministros. E os cita. Estes, diante disso, não tinham saída senão proclamar isenção, condenando-o.

Delcídio, assim, acabou prestando involuntariamente um serviço público: o STF, que já foi acusado de tentar melar a Lava Jato, com o fatiamento do processo, não tem agora como recuar da indignação exibida em relação a esse caso.

Num momento como este, de grave crise moral, nada como uma Corte Suprema indignada. Grato, Delcídio.

Isso poderá acelerar – espera-se que sim – ações análogas em relação a outros parlamentares, implicados na Lava Jato. O ineditismo de um senador preso em pleno exercício do mandato poderá perder essa conotação em breve.

Mais: a delação premiada de Nestor Cerveró, o homem-chave da negociata de Pasadena – que o então presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli considerou “um bom negócio” -, poderá estimular outras; a do próprio Delcídio, pressionado pela família a contar a história completa. Não convém contrariar a família.

Nenhum comentário:

Postar um comentário