sábado, 3 de outubro de 2015

A extrema-unção da Era da Canalhice


O Brasil nasceu por engano. Buscavam um atalho para as Índias os tripulantes das caravelas que em abril de 1500 perderam o rumo tão espetacularmente que acabariam despencando nos abismos do fim do mundo se não tivessem topado com o mágico mosaico de praias com areias finas e brancas banhadas por ondas verdes ou azuis, matas virgens e florestas do tamanho do mar, flores deslumbrantes e frutas sumarentas, lagos plácidos e rios selvagens, peixes de água doce ou salgada, bichos mansos de carne tenra e, melhor que tudo, aquela demasia de índia pelada.

O Brasil balançou no berço da safadeza. Nem imaginaram que assim seria aqueles primitivos viventes cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar preciosidades por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para qualquer forasteiro, pois os nativos praticavam sem remorso o que só era pecado do outro lado do grande mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que desconheciam nem a castigos prescritos pela religião que aqui nunca existira.

O Brasil nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe num terreiro de candomblé pensaria em juntar na Sapucaí ─ como fez num porto seguro frei Henrique Soares, celebrante da primeira missa, pelo menos é o que está no quadro famoso ─ um padre de batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos cristãos no convívio amistoso com arcos, flechas e bordunas.

O Brasil balançou no berço da maluquice. Marujos convalescentes da travessia do Atlântico, atarantados com a visão do paraíso, decidiram que aquilo era uma ilha e deveria chamar-se Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até alguém desconfiar, incontáveis milhas além, que era muito litoral para uma ilha só, e então lhes pareceu sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era terra aquilo que pisavam.

O Brasil nasceu sob o signo da preguiça. Passou a infância e a adolescência na praia, e esperou 200 anos até criar ânimo e coragem para escalar a muralha verde que separava o mar do planalto, e esperou mais um século antes de aventurar-se pelos sertões ocultos pela floresta indevassada, num esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, tanto os aqui nascidos quanto os vindos de fora, e todos os descendentes de uns e de outros, sempre deixariam para amanhã o que deveriam ter feito ontem.

Tinha de dar no que deu. Coerentemente incoerente, o Brasil parido por engano hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo do império português, o Brasil amalucado teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, o Brasil safado acolheu o filho da rainha que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta, o Brasil preguiçoso foi o último a abolir a escravidão, o Brasil sem pressa foi o último a virar República, o Brasil carnavalesco transformou a própria História num tremendo samba do crioulo doido.

O cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não mudou a essência da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que ainda mais voraz e mais cafajeste. Extraordinariamente mais cafajeste, informa a paisagem deste começo de século. Passados 500 e poucos anos, os piores herdeiros dos piores degredados promoveram o grande acerto dos amorais, instalaram-se no coração do poder e vão tornando decididamente intragável a geleia geral brasileira.

Nascido e criado por devotos da insensatez, o Brasil que teve um imperador que parecia adulto aos 5 anos de idade foi governado durante oito anos por um analfabeto que se porta como moleque irresponsável e agora é presidido por uma avó menos ajuizada que neto de fralda. Com um menino sem pai nem mãe no trono, os habitantes do império da loucura não sentiram medo. Com dois sessentões no comando, os brasileiros que pensam aprenderam o que é sentir-se sem pai nem mãe.

O início do terceiro mandato de Lula parece uma continuação dessa biografia em miniatura do Brasil publicada no começo do primeiro mandato de Dilma. Parece mas não é, gritam as mudanças na paisagem ocorridas desde o julgamento do Mensalão. A crise econômica pulverizou de vez a farsa da potência emergente inventada pelo deus dos embusteiros. Ainda há juízes no Brasil, vem reiterando há meses o irrepreensível desempenho de Sérgio Moro. A Polícia Federal e os procuradores federais já provaram que a seita no poder é um viveiro de corruptos, vigaristas e incompetentes.

A Operação Lava Jato vai clareando a face escura do país. O PT está morrendo de sem-vergonhice. Figurões do partido trocaram o palanque pela cadeia. Logo faltará cela para tanto bandido. A supergerente de araque já virou ex-presidente. O fabricante de postes agoniza nas pesquisas eleitorais. Nas ruas, nos restaurantes ou no botequim da esquina, os indignados amplamente majoritários exigem o fim destes tempos de tal forma infames que uma Mãe dos Ricos pôde prosperar anos a fio disfarçada de Pai dos Pobres.

A nudez do reizinho quase setentão mostrou que o filho de uma migrante nordestina é um multimilionário pai de multimilionários. Multidões de crédulos vocacionais descobriram a tapeação: o maior dos governantes desde Tomé de Souza era a fantasia que camuflava o guloso camelô de empreiteira. Lula não demorará a entender que desemprego cura abulia, que os velhos truques não funcionam mais, e o que deveria ter sido uma aula de esperteza foi um tiro no pé.

Ao regressar a Brasília, ficou mais perto de Curitiba. O início do terceiro mandato vai antecipar a extrema-unção da Era da Canalhice.

Augusto Nunes

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