Junto com o amor, talvez a principal faculdade humana para a vida seja a compreensão. Precisamos compreender para agir. Mas o julgamento apressado é a preguiça do espírito, mãe dos preconceitos e injustiças. Julgar, quando resulta de compreender, é o grande ato humano. Por isso vem no fim. Ser humano não vem de graça. Poetas, filósofos e místicos (que todos somos) fazem o trabalho de compreender. Por isso parecem, às vezes, em cima do muro. Porque compreendem, quando os demais já julgaram e estão prontos para executar. Poetas, místicos e filósofos são os fiadores da serenidade. Frequentemente, por isso, expulsos pela ação precipitada: pensam, sentem, veem demais.
Assim é com a globalização. Fenômeno complexo, há nela bem e mal. Compreender isso é exigência insuperável para agir. No final, podemos emergir do silêncio que pondera com convicções antagônicas: o mundo globalizado integra pessoas, sociedades e culturas — o que é bom; e expulsa mais de meia Humanidade dos seus benefícios — o que é insuportável, e nos diz que o sistema falhou. E aí as oposições se instalam: para uns é assim que é, nada a fazer. Para outros, deu errado, não dá para aceitar. É preciso encontrar outra direção. À globalização financeira, contrapor a mundialização da ternura, para a qual não há bolsas nem investimentos. Não é uma aposta, a ternura. É uma raiz.
Mundializar a fraternidade. Todo o poder do mundo age contra essa utopia generosa. Tudo de poderoso entope os regatos minúsculos por onde passa a fraternidade. A nossa ternura, a ternura de Deus.
Um dia Deus determinou a Elias que saísse da sua gruta. Ele iria se mostrar enfim. Veio um furacão, e Deus não estava no furacão. Houve um grande fogo, e Deus não ardia no fogo. Elias já desanimava daquele contato. Aí passou uma brisa muito suave. Precisamos, hoje, da brisa suave. Os furacões roncam e os fogos explodem. Não é aí que está a ternura de Deus.
E precisamos de uma instituição. Os povos da fraternidade errariam pelo deserto, e se perderiam, se não tivessem um camelo, um jipe velho, pegadas nunca apagadas de quem já passou e chegou a salvo ao poço da boa água. Uma instituição global, capaz de aglutinar esperanças. Ela existe. É a Igreja, se for capaz de se lembrar de seu nome quer dizer assembleia, reunião do povo, lugar onde se lê junto para compreender e agir no mundo. Ela existe, mas envelheceu no poder. Ainda é uma comunidade de amor. Mas teve terras, exércitos, fez guerras. Julgou sem compreender, tantas vezes! Mas é a única estrutura de organização de uma parte significativa da Humanidade que se encontra em todo lugar e pode se opor amorosamente à globalização que expulsa meio mundo. Esse imenso contingente de excluídos deveria ser o povo da Igreja. Pode ser. Há sinais para confiarmos que será. Os humilhados e tristes da terra.
Ela tem muito que aprender. Ser mundial, sair da Europa. Encontrar-se com as diferenças dos povos e amá-las. Não demonizar. Viver no mundo, não o condenar. Aprendizado difícil. Não é o que tem sido feito. Mas pode ser. Quando alguém reza em silêncio e condena em voz alta a feroz prostituição de crianças a brisa soprará. Quando alguém sem julgar se mantiver silenciosamente à cabeceira de um oriental pobre que contraiu AIDS e vai morrer, segundo sua cultura, sem honra e sozinho, a brisa suave estará lá, testemunhando a solidão. Quando pessoas com deficiências não forem tratadas como mendigos da vida, mas amados como iguais, a brisa passará. E a Igreja, se for capaz, a espalhará pelo mundo da sombra e da tristeza. É preciso que haja uma internacional da solidariedade. Está aí. Dá bons sinais, como um farol. Como é próprio dos faróis, tanto dá a sombra quanto a luz. Mas a sombra não fica mais sozinha. O povo da fraternidade precisa ocupá-la, abri-la para o sorriso das origens. Os místicos, poetas e filósofos em nós irão junto. E a ternura de Deus se mundializará. Ou... Ou a mais antiga instituição do Ocidente virará uma estátua de sal. E a brisa suave se limitará aos pontos onde sopra, e não ganhará o mundo. Pode um tão esperançoso poder abdicar tão tristemente?
A dor dos excluídos olha para o homem que hoje tem o sorriso tímido de Deus na boca. Se não o anularem antes, seu toque de mudança amorosa pode liberar a brisa presa no furacão. E não será mais preciso “ser da Igreja” para receber a brisa no rosto e respirar dentro dela. Fim dos monopólios do divino e do amor, todas as religiões, e os que não creem, na festa comum. Toda a Humanidade e todas as coisas e bichos da terra tocados por essa ternura acima das divisões. O ar novo e fresco será uma evidência de vida para todos.
É possível acreditar nisso. Compreender o mundo assim, sem julgamentos nem exclusões. E agir. Serenamente, levando nas mãos a ternura de Deus.
Marcio Tavares D'Amaral
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