domingo, 6 de setembro de 2015

As lágrimas do ator político

As lágrimas do comediante, disse um dia Diderot, escorrem de seu cérebro; as do homem sensível jorram de seu coração. Na política, também é assim. Políticos e governantes, como os atores, vivem de representações. E criam projeções que passam a se confundir com os personagens que representam. Poucos, muito poucos, podem dizer que o “eu” e o “ele” são a mesma coisa. Alguns construíram seus perfis sobre um conceito negativo que, de tanto lapidado e moldado às circunstâncias, passou a ser aceito pelos cidadãos. É, por exemplo, o caso do “rouba, mas faz”. Muitos estendem o ciclo de vida política graças à caricatura que moldaram. É o caso de políticos com o carimbo de “obreiros, estradeiros, fazedores, desenvolvimentistas”.


Até os dias de hoje, os comediantes impressionam seus públicos não por serem furiosos, mas por representarem muito bem o furor. O ciclo dos histriões que, com o embalo da dor, comovem as plateias, está chegando ao fim. A cidadania se expande em todos os espaços da pirâmide, trazendo em seu bojo uma carga de conscientização política, que inclui a capacidade das pessoas de distinguir a verdade de versões, a falácia de fatos. A máscara começa a ser retirada dos atores políticos por grupos que absorvem o escopo ético e moral. O espaço para o engodo se estreita sob uma nova ordem ética, construída ao lado dos vergonhosos escândalos que abalam os pilares da nossa frágil democracia.

O avanço racional da sociedade começa a se distanciar dos perfis ficcionais e de um nacional-populismo que, entre nós, teima em fincar raízes desde os tempos de Vargas, prosseguindo na combinação do desenvolvimentismo com política de massas de Kubitschek, no trabalhismo de Goulart, na índole nacionalista de Jânio, na era autoritária-populista-esportiva de Médici, no olimpismo-aventureiro de Collor até o palanque demagógico de Lula, cuja continuidade descambou no tecnicismo misturado com o colchão social arrumado por Dilma. São traços ligeiros do ethos populista dos nossos governantes.

Adhemar de Barros, ícone do populismo paulista, deixou de seu Governo a marca do “rouba, mas faz”, que, mais tarde, viria a ser colada a Paulo Maluf, cujo perfil se associou ao obreirismo faraônico, tão característico que lhe emprestou um slogan muito clonado nas campanhas eleitorais: “fulano fez, fulano faz”.


O populismo do passado se agarrava às emoções das massas e nas grandes mobilizações sociais. A onda massiva na contemporaneidade alcançou o clímax com Luiz Inácio Lula da Silva, um mestre na combinação de signos. Pobre, retirante nordestino, metalúrgico, com um simples curso primário, voz rouca, atarracado, passou a usar um verbo metafórico do gosto das massas. Chegou ao centro do poder e ao assento maior da República, o de presidente, na demonstração muito badalada por ele de que qualquer brasileiro pode vir a ser o chefe da Nação. Virou ídolo. Conseguiu o feito que nem Getúlio alcançou: ser opositor a ele mesmo. Como? Usando artimanhas de palanque: como presidente, parecia muitas vezes um combatente ao governo que ele mesmo comandava. A verve e o verbo exaltado do oposicionista escondiam as verbas que faltavam às regiões. Um exímio ator.

Hoje, Lula não consegue arregimentar multidões. Tem ainda uma boa audiência para ouvir seu palavrório. Mas as massas não parecem dispostas à mistificação. A vacina ética entra nas veias sociais. O engodo chegou a tal ponto, nos últimos anos, que começa a despertar desconfiança. Quem imaginaria o boneco Pixuleco (imitação de Lula) desfilando pelas ruas do país? Grupos tomam o lugar das massas, na demonstração de que o vigor crítico dos cidadãos se expande. A mídia assopra brasa na grande fogueira dos escândalos e este último, o Lava Jato, chama a atenção do mais distante brasileiro por seus efeitos devastadores.

Os espectadores da cena política não querem se entregar às ilusões, preferindo exercitar sua indignação, desmistificar o jogo dos atores e denunciar a encenação dos personagens. A conclusão é patente: a política feita por alguns atores não tem melhorado a vida das pessoas. As crises se escancaram: a economia aperta o bolso dos contribuintes; a política é um mar de lama; a crise solapa os valores morais; começa a faltar água nas torneiras e daqui a pouco poderá haver escuridão com um apagão energético.

Multiplica-se a violência, os serviços públicos se deterioram, o desemprego grassa, os hospitais estão sucateados, os remédios custam caro e a vida se torna insuportável. A classe emergente, a C, teme regressar aos espaços carentes da classe D, de onde veio. Os cidadãos seguram o grito preso na garganta: “chega. Chega de mentiras, de encenação, de rapinagem, de brincar com a nossa vontade. Queremos um novo tipo político. Que chore com o coração e não com o cérebro”.

A insatisfação atinge as alturas. O sentimento de revolta acaba oxigenando a democracia. Afinal de contas, como lembrava John Stuart Mill, em Considerações sobre o Governo Representativo, há duas espécies de cidadãos: os ativos e os passivos. Os governantes preferem os segundos - pois é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes - mas a democracia necessita dos primeiros. Numa sociedade passiva, os súditos serão transformados em ovelhas dedicadas tão somente a pastar capim uma ao lado da outra e a não reclamar nem mesmo quando o capim está escasso.

Viva! O povo começa a perceber quando as lágrimas saem do cérebro ou do coração dos nossos comediantes políticos. Não quer mais pagar tributo por um expressionismo cênico, caricatural, grotesco, mímico, que tem feito da vida pública um palco de sentimentos falsos, forçados ou fabricados, e da representação política um altar de glorificação pessoal.

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