No início do mês, o animal fora atraído para fora do parque por um guia profissional a serviço de um caçador amador, o dentista americano Walter Palmer. Depois de abatido, decapitado e esfolado, o leão teve a cabeça entregue a Palmer e a história terminaria aí. A cada ano, somente no Zimbábue, uma média de 49 leões selvagens são abatidos legalmente como troféus.
Mas Cecil jamais poderia ter sido abatido legalmente, e a descoberta de sua carcaça movimentou a comunidade ambientalista, tornou-se viral nas redes sociais, foi noticiada com destaque em jornais do mundo inteiro e enterneceu multidões.
Caso tenham lido o noticiário e visto as imagens do garboso felino quando vivo, é provável que a diretoria da SuperVia, a concessionária que opera os trens da região metropolitana do Rio, e os membros da Agetransp, a agência reguladora que fiscaliza os transportes no estado, também tenham se sensibilizado com a desumanidade cometida contra o nobre animal.
Pena que quando um ser humano recebe menos consideração do que um vira-lata morto as sensibilidades feridas respondem a outros chamados, prioridades e cálculos.
O carioca Adílio Cabral tinha 33 anos e nenhum pedigree social. Terminara de cumprir pena de prisão por tráfico de drogas seis meses antes e vendia doces como ambulante. Na terça-feira, ele levara a mãe ao médico e teria pulado o muro da estação de Madureira quando foi colhido por um trem expresso que seguiu viagem.
Seu corpo ficara sobre os trilhos, a circulação de trens não foi interrompida e a rotina da estação seguiu seu curso até a aproximação de outro trem.
É então que se inicia o impensável. Imagens captadas pelo celular de uma testemunha mostram o maquinista parar a composição a poucos metros do corpo inerte, à espera de instruções. À sua frente, ladeando os trilhos, estão meia dúzia de indivíduos. Um deles, de capacete, uniforme laranja e identificado como funcionário da SuperVia, acena para o maquinista passar com o trem por cima do corpo de Adílio depois de dar uma calculada na altura da carroceria. Outros dois parecem participar do cálculo visual. Quando a composição se afasta, o grupo se aproxima dos trilhos e parece conferir se se algo mudou em Adílio. É a vida que segue.
No entender da SuperVia, a autorização de passar com o trem pela segunda vez sobre o corpo do vendedor ambulante foi acertada para evitar o problema maior — a retenção de diversos trens lotados em horário de pico. Ademais, afirmou o comunicado da concessionária, ficara constatado que o trem tinha altura suficiente para fazê-lo sem risco de atingir e vilipendiar a vítima.
Não cabe aqui listar todas as aberrações embutidas na explicação e no procedimento dessa empresa já tão coalhada de multas, cujo contrato de operação no estado está garantido até 2048. Cabe, porém, apontar a linguagem de falsa eficiência empresarial e a delirante simulação de normalidade de um serviço instituído para atender a humanos.
A concessionária alegou que seis mil passageiros teriam sido prejudicados caso o fluxo fosse interrompido. Sem dúvida. Aliás, seria a enésima paralisação de serviço a que são rotineiramente submetidos. Com uma diferença. Desta vez, a empresa poderia arriscar submeter a seus milhares de usuários uma pergunta simples e direta: “Você prefere passar o trem por cima de um ambulante morto ou aceita chegar em casa mais tarde?” Ao contrário da concessionária, é possível que a maioria preferisse aguardar. Sem quebradeira, em respeito a uma vida que podia ser a de um deles.
No caso do leão Cecil, ocorreu um fenômeno quase oposto. O excesso de luto e militância viral foi muito além da simpatia genuína pelo felino e do interesse habitual por questões envolvendo espécies em extinção.
Desde que o caso foi noticiado, ocorreu a morte de um dos últimos cinco rinocerontes-brancos do norte existentes no planeta, restando portanto apenas quatro antes da extinção definitiva dessa subespécie. No entanto, ninguém se comoveu.
Cecil mobilizou meio mundo por ser conhecido, fotogênico e popular. E pelas circunstâncias de uma morte sob medida e um vilão ideal para mobilizar as redes sociais em torno de um justicialismo eletrônico.
Cecil morrera porque o doutor Walter Palmer pagara o equivalente a R$ 160 mil para ostentar a cabeça do animal entre seus troféus de caça. Algum dia, quem sabe, alcançaria a glória de poder ter em sua propriedade os chamados “cinco grandes” (um leão, um elefante, um búfalo do Cabo, um leopardo, um rinoceronte), espécie de Grand Slam para caçadores de luxo.
Com um vilão desses pela frente, ativistas precisaram de pouco tempo para disseminar a sua identidade, dados pessoais e profissionais de seus familiares e círculo de relacionamentos mais próximos. Casado e pai de dois filhos, Palmer teve de fechar o consultório, dispensar os funcionários, indicar clientes para outros dentistas, ter sua existência na internet invadida por hackers tanto bem-humorados quanto ameaçadores.
Alguns o mandam apodrecer no inferno, outros fazem aparecer a foto do leão Cecil quando se digita o nome do dentista, outros ainda sugerem ao Estado Islâmico cuidar de Palmer. Como é de praxe no caso de ataques em mídias sociais, eles funcionam mais para lavar a alma dos justiceiros e satisfazer a indignação dos mais exaltados.
Mas contêm um risco. Como alerta Max Fisher, diretor de conteúdo do site Vox, eles podem extravasar do mundo virtual para o real antes que a vítima seja julgada pelo sistema judiciário institucional.
Uma coisa parece certa: Walter Palmer não vai conseguir exibir o troféu conquistado tão cedo.
Dorrit Harazim
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