domingo, 22 de fevereiro de 2015

Esse Deus brasileiro


Se entendermos que não somos protegidinhos do mandachuva, há esperanças. Mesmo sem a água a se derramar
Semana de cinzas, início de quaresma. Para antigos preceitos religiosos, época de recolhimento e reflexão. Um bom momento para lembrar algo que sempre se prefere ignorar. Não devia ser novidade, mas, que jeito?

Melhor dizer de chofre. Desculpem se machuca. Mas o fato é que algum dia vamos ter de encarar. Usar a razão para admitir a realidade e aceitar o fato de que Deus não é brasileiro. Ou é de todos ou de ninguém. Sem preferências ou nepotismo.

É claro que há quem simplesmente ache que Deus não é, não existe. E há também aquele indivíduo que acha que Deus é ele, o ser perfeito que não erra nunca, sempre sabe tudo, mas pode se dar ao luxo de afirmar que nunca soube daquilo que acha que não deveria saber.

Ou, pelo menos, é o eleito de Deus, que não o traria até onde veio se não lhe reservasse grandioso destino.

Para acordar aos poucos essa gente delirante, alguns sinais divinos bem que insinuaram que não é bem assim que a banda toca. Perder de 7 x 1 em casa para a Alemanha, por exemplo, devia ter lembrado que não há um povo mais protegido que outros, capaz de vencer planejamento, técnica e talento apenas por se acreditar conterrâneo do Senhor e queridinho da turma lá de cima. Não houve pistolão poderoso que salvasse.

Se Deus não é brasileiro, seu assessor São Pedro não tem por que nos proteger de forma especial. Não dá para contar apenas com ele, que, aliás, tem se revelado bastante incompetente como provedor.

Afinal, o Brasil já tem tanta água, é o campeão mundial de água doce. Para que os brasileiros querem também que essa água natural seja bem distribuída, nos lugares onde se concentram, quando não conseguem nem ao menos repartir direito as outras riquezas, que dependem apenas de como eles mesmos distribuem?

E tome mais água onde há pouca gente; e mais gente onde há pouca água. A eterna atitude predadora, a urbanização desordenada, o desperdício, a falta de consciência ambiental vêm contribuindo para complicar as coisas.

Ficamos, então, nos autoenganando, sem usar a razão e racionalizar o uso de nossos recursos antes que tenhamos de racioná-los. Confiantes em que Deus é brasileiro e nada de ruim nos acontece. Ingenuamente crendo na carta de Caminha, ao anunciar ao rei de Portugal como ele era venturoso pela descoberta desta terra que o escrivão mal vira e uma semana depois já previa: "Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!"

Há anos estamos sofrendo enchentes e secas catastróficas, acompanhadas de mortes, desabrigados, migrações, gente passando necessidade. Mas não conseguimos captar, tratar e armazenar a água das inundações.

Custa ter leis que protejam os rios, preservem as matas ciliares, evitem o desmatamento. Quando há leis, falta fiscalização. Quando há fiscais, ou são corrompíveis ou não têm meios de se impor. São Pedro sozinho não dá conta, por mais que suas chaves possam fechar as portas de outro céu sem nuvens.

Dependemos dele, claro. E das chuvas, se são suas. Mas bem que podíamos fazer nossa parte. Primeiro, com este sufoco de agora, ao ter consciência do problema e levá-lo em conta para pressionar governantes.
Leia mais o artigo de Ana Maria Machado

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