A 1 de Julho de 2025, a Comissão de Justiça Yoorrook, criada pelo Estado de Victoria, na Austrália, definiu que as populações aborígenes e indígenas sofreram um genocídio às mãos do Império Britânico, vendo a sua população diminuir em cerca de 75 por cento. O relatório demonstrou com base em documentos e testemunhos a existência de massacres, remoções forçadas de crianças, destruição de línguas, culturas, espiritualidade e de formas de vida, tudo atos enumerados na Convenção sobre o Genocídio de 1948. A notícia sobre a decisão da comissão, não obstante ter sido publicada em vários países, nomeadamente de língua inglesa, foi praticamente ignorada pelos media e pelo mundo da política.
Este silêncio sobre o tema genocídio, infelizmente tão atual, não é novo nem exceção. A questão da Palestina tem demonstrado à saciedade o desconforto político, e até o risco diplomático que o mesmo implica. No entanto, temos de ultrapassar este desconforto, porque como nos mostrou o caso Australiano e o processo em curso no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) sobre o genocídio na Palestina, falar sobre o tema e analisar o impacto e as nossas ações é um dever jurídico e moral.
O termo genocídio foi criado por Raphael Lemkin em 1944, para definir a destruição e extermínio deliberado de uma etnia ou raça, ou grupo de pessoas. A Convenção de Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, ratificada por Portugal em 1998, mas somente enviado à ONU a 9 de Fevereiro de 1993, define como genocídio atos cometidos com a intenção de destruir total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial, ou religioso, através de homicídio, danos físicos, imposição de condições de vida destrutivas, esterilização forçada, ou a remoção forçada de crianças. Os Tribunais Criminais Internacionais para a Jugoslávia e Ruanda, e o TIJ reforçaram dois critérios fundamentais: o primeiro sendo a intenção, dolus specialis; e o segundo a realização de pelo menos um dos cinco atos listados no artigo segundo da Convenção:
“Na presente Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:
a) Assassinato de membros do grupo;
b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;
c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição
física, total ou parcial;
d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.”45.
A Convenção da ONU, não espelha, contudo, as ideias de Lemkin sobre a destruição cultural, linguística, educativa e espiritual, que na sua perspetiva eram também formas de genocídio. A razão pela qual estes atos constantes da definição de Lemkin não estão incluídos na Convenção deve-se ao facto de diversos estados-membros se terem oposto, pois que, certamente, tal poria em causa as suas políticas com as minorias étnicas e culturais existentes nos seus estados. O resultado é que o conceito existente é insuficiente face às agressões que se têm vindo a verificar.
A Comissão Yoorrook conseguiu aplicar o direito internacional atual ao contexto colonial da Austrália tendo inclusivamente ido em certos para além dos critérios da convenção da ONU.
Com efeito, considerou, aplicando critérios culturais definidos por Lemkin, que entre 1834 e 1851 as populações aborígenes foram vítimas do crime de genocídio, tendo documentado a existência de múltiplos massacres, a existência das ‘Stolen Generations’, crianças removidas forçadamente, a destruição cultural, esterilizações, e confinamento em condições de vida degradantes. No âmbito do seu trabalho a Comissão defendeu ainda que para além do genocídio (que terminou em 1854), o tratamento dos povos aborígenes continuou a ser racista, sujeitando os povos indígenas a tratamentos muito desiguais em diversas áreas nomeadamente no acesso à saúde e educação.
O relatório recomendou reparações, reconhecimento, e reformas sistémicas a vários níveis, em particular na educação. É de salientar a reação de líderes indígenas, como Jill Galagher, que afirmou que não culpava nenhum australiano vivo por estes acontecimentos, mas que era extremamente importante “aceitar, reconhecer e reconciliar” os resultados da comissão. É ainda de notar que esta comissão configura a primeira vez que um Estado ocidental reconhece como genocidas os seus atos fundacionais.
No dia 30 de Junho de 2025, o Secretário-Geral Assistente para o Médio Oriente, Khaled Khiari, afirmou que o número de mortes em Gaza desde outubro de 2023, tinha ultrapassado os 56.500, com mais de 1.000 só neste mês de junho 2025, para além do número chocante de mortes, Israel tem procedido à destruição de Gaza e de toda a sua infraestrutura civil, impondo a fome como arma de guerra, e forçando a deslocação de cerca de 1.7 milhões de pessoas. Estes atos levaram a Africa do Sul, com o apoio de vários outros países, principalmente, do Sul Global, a acusar Israel de genocídio no TIJ, que em janeiro de 2024 admitiu haver risco de genocídio, e ordenou várias medidas provisórias, medidas estas que foram completamente ignoradas por Israel.
As ações do Governo israelita correspondem a três dos cincos atos listados pela Convenção de 1948, a qual salienta-se foi assinada por Israel a 17 de agosto de 1949 e ratificada a 9 de março de 1950. Tal como demonstrado na Comissão australiana, existem também inequívocas provas de uma intenção destrutiva por parte de Israel, que constituem o dolus specialis. Tal como os colonos britânicos na Austrália negavam a humanidade dos povos aborígenes, também os líderes israelitas consideram os palestinianos ‘animais’ a ser eliminados, conforme o Genocide Watch, que documentou a utilização desta linguagem, evidência esta utilizada no processo do TIJ. As provas são claras e inequívocas, o que torna mais incompreensível o silêncio do mundo ocidental e, naturalmente, do Estado Português.
Apesar de membro da Convenção de 1948, Portugal tem não só passado ao lado do reconhecimento do genocídio na Palestina, como apresentado resistência em enfrentar o seu próprio passado colonial, negligenciando assim a sua responsabilidade histórica. Com efeito, o reconhecimento do genocídio do povo palestiniano tal como o genocídio Herero na Namíbia, entre outros, forçosamente obrigar-nos-ia a confrontar-nos com as nossas ações em Africa. Só entre 1501 e 1866, Portugal traficou cerca de 5.848.265 africanos escravizados. No século XX, há pouco mais de 50 anos foram cometidos massacres, devidamente documentados, em Africa (Batepá em 1953 e Wiriyamu em 1972), em que usámos napalm nos bombardeamentos durante a guerra, tendo Portugal sido, durante anos, no Estado Novo, tal como Israel o é agora, condenado pela ONU pelas nossas ações nas colónias.
Lamenta-se, pois, o facto de Portugal não ter ainda criado qualquer comissão de justiça histórica, ou de verdade, com vista ao reconhecimento das suas ações, nomeadamente, no período colonial, as quais provocaram a morte e a tortura de tantos.
A Comissão de Yoorrook demonstra que é possível num Estado ocidental moderno investigar, reconhecer, e definir os atos da estrutura colonial como genocidas, como definido pelo direito internacional.
A Convenção de 1948, criada sob a memória do Holocausto e da destruição de povos, é um pilar do sistema internacional moderno. A lei criada por este documento é clara e exigente, no, entanto, o compromisso com esta Convenção depende da vontade política dos Estados em reconhecerem o intolerável. A Comissão Yoorrook, representa um gesto de honestidade histórica, que demonstra também que é possível aplicar e cumprir o direito internacional.
A destruição da Palestina, cumpre os requisitos jurídicos definidos na Convenção, para a sua consideração como genocídio. A recusa em utilizar o termo genocídio por parte de uma grande maioria de estados ocidentais é a recusa das provas inequívocas acumuladas pela ONU, pelo TIJ, por várias organizações de direitos humanos, e por vários Estados, nomeadamente do Sul Global, demonstrando que o direito internacional é menos importante que a geopolítica, e que a humanidade dos povos é condicional.
O silêncio de Portugal não é neutro, é uma escolha que revela mais sobre o passado do que sobre o presente. É um silêncio, que compromete e que põe em causa os nossos compromissos históricos, éticos e jurídicos.
Portugal deve não só apoiar o processo sul-africano no TIJ com vista ao reconhecimento do genocídio na Palestina perpetrado por Israel, como seguir o exemplo do relatório da Comissão Yoorrook, como um ponto de partida para analisar os crimes contra o direito dos povos praticados no período colonial, criando uma comissão de verdade sobre a escravatura e o colonialismo. A recusa em cumprir a Convenção sobre o Genocídio de 1948 e estudar e repensar o nosso passado colonial não é uma questão de prudência diplomática ou histórica, é, sim, a continuação de uma omissão que nos envergonha. Está na hora de Portugal enfrentar a sua verdade histórica, enfrentando com clareza, rigor e sentido de justiça a nossa história.
É tempo de olharmos para o espelho da história e dizermos a verdade sem medo. Não se exige culpa, exige-se responsabilidade para reconhecer, reparar e não repetir.

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