Digo que parei na imagem. E sinto que tenho de o justificar. Não foi pelo escândalo. Fui parada pela ideia de que é extraordinário como aquela mulher conseguiu descer uma avenida, no meio de uma multidão, sentindo-se segura quando estava tão exposta.
Só essa minha reação já mostra o quanto crescemos condicionadas pela ideia de que nos expormos equivale a convidar os outros a invadir-nos. “Vais mesmo sair assim vestida? Se vais voltar sozinha para casa, talvez não devas levar uma saia tão curta. Se levares esse decote, alguém se pode meter contigo. Vão ficar com a ideia errada. Pareces uma oferecida”. Somos programadas para pensar que mostrar-nos equivale a oferecer-nos. Se estamos no espaço público, somos públicas.
Mas não sou eu quem se irrita com os turistas que se passeiam pelo Chiado em fato de banho? Sim. Então, por que raio defendo agora a rapariga que descia a avenida de fio dental e cravos? Porque o que ela estava a fazer era usar o seu corpo politicamente. Ela estava lá para nos mostrar o efeito que tem um corpo feminino no espaço público quando é exibido por decisão própria e afirmação de liberdade e não para satisfazer uma objetificação comercial. Porque ninguém se choca com as imagens de mulheres despidas que na mesma avenida vendem perfumes e cremes. Porque quem está aflito com a libertinagem da miúda não se insurge contra as mui desnudas bailarinas que ladeiam qualquer cantor pimba nos programas da manhã.
Que poder é este que temos que tanto medo mete? Porque só pode nascer do medo a perseguição, a repressão, a tentativa de domínio e humilhação. Somos treinadas para baixar os olhos, tapar o corpo, falar baixo e pouco. E, se não o fazemos, somos bruxas, loucas, taradas, convencidas, mal comidas, à procura de atenção.
Não sei como se chama a mulher que desceu a avenida que ainda tem o nome da liberdade. Sei que a imagem dela tem a força de um grito. E que este é o momento para gritar.
Milhões de raparigas da idade dela engrossam nas redes sociais a trend das tradewifes, exaltando a ideia de que as mulheres devem ficar em casa, a cozinhar e a tratar da imagem, sustentadas por homens, porque – como repetem nos podcasts da moda – “o trabalho não combina com a energia feminina”. Os feeds estão cheios de mulheres muito produzidas a fazer bolachas e granola. Há posts sobre as zonas turísticas mais frequentadas por sugar dadys, assinalando onde podem ser caçados estes machos mais velhos e endinheirados. No Telegram, homens partilham imagens que as namoradas lhes enviaram ou fotografias tiradas à socapa debaixo das saias de quem nem se apercebeu que estava a ser fotografada. Os vídeos de violações circulam pelo WhatsApp. E na machoesfera os incels trocam fantasias sobre massacres feitos para castigar as raparigas que lhes negam o sexo a que acham que têm direito ou discutem como a legalização da violação poderia fazer baixar este crime para elas “deixarem de se pôr a jeito” e de os provocarem com esse único poder que têm e que está entre as pernas.
E o grande drama, a demonstração clara de que há liberdade a mais e juízo a menos, é uma mulher de cuecas de renda que desce uma avenida, numa manifestação pacífica, feita para celebrar o dia em que se começou a quebrar um pudor imposto por uma noite que amordaçava o desejo e a afirmação de todos os que se desviavam da norma.
Do que precisamos não é de pudor, é de vergonha na cara. Quem explora e quem oprime, quem rouba e quem corrompe, quem exibe públicas virtudes para esconder crimes privados, quem humilha e quem viola, quem persegue e quem amedronta. São esses aqueles que precisam de se envergonhar.
Margarida Davim

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