É isso, nem mesmo a festa momesca e a transcendência que ela provoca consegue alterar ou suspender a realidade: quem recolhe as toneladas e mais toneladas de latinas tem uma cor específica, e não usa glitter.
Em artigo publicado no portal Mundo Negro em 12 de fevereiro de 2024, Priscila Arantes sublinhou questões fundamentais que acompanham a relação intrínseca entre catar lixo, a pertença racial desses sujeitos e as péssimas condições de trabalho em que eles estão. Dois em cada três catadores se autodeclararam negros ou pardos.
A precariedade é pouco para definir as condições de trabalho a que são submetidos (tanto aqueles que se organizam em associações e cooperativas, como os que trabalham de forma autônoma) e, se isso não bastasse, nos últimos anos a renda mensal de catadoras associadas caiu significativamente . Atualmente, muitos desses trabalhadores não conseguem tirar nem R$ 300 por mês, catando a mesma quantidade de lixo que, há três anos, eles rendem um pouco mais do que um salário mínimo .
De acordo com o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), estamos falando das condições de vida de aproximadamente 800 mil pessoas, que são diretamente responsáveis por 90% da reciclagem de lixo no Brasil.
As pessoas cujo trabalho permite que o custo da reciclagem de alumínio caia pela metade, são as mesmas que, embora organizadas em cooperativas e tendo contratos celebrados com algumas prefeituras do país, não têm previsão de quanto receber, e muitas vezes estão sujeitas a condições de trabalho que coloca sua saúde em risco por causas ocasionais, como a falta de equipamento adequado para trabalhar.
O mais perverso disso tudo, é que vivemos numa era em que o princípio da sustentabilidade está em voga. Ainda bem. Afinal, é fundamental revisarmos os padrões de consumo e descarte das últimas décadas.
Mas, como sublinhado por Anita Cristina de Jesus, chefe da Divisão de Sustentabilidade, Acessibilidade e Inclusão do TRT-4 do Rio Grande do Sul, esse processo não pode simplesmente desconsiderar as questões que norteiam a vida dos catadores e catadoras, como se eles apenas fizeram parte do cenário que compõe o processo de reciclagem. Antes de mais nada é preciso enxergar esses homens e mulheres naquilo que são: trabalhadores.
Essa vem sendo a luta da maior parte dos catadores e catadoras, principalmente aqueles que atuam no MNCR, como Alexandro Cardoso, o Alex Catador, importante liderança do movimento que recentemente concluiu uma etnografia na qual analisa e humaniza a vida e o trabalho dos catadores.
Um estudo que vale a pena ser lido, para que não esqueçamos do estigma histórico que acompanha pessoas negras e pobres que trabalham com a coleta de lixo e dejetos (lembremos que por muito tempo eram escravizados que faziam tais atividades), mas também para lembrar que , embora estejamos atualizando uma coisa bacana e importante, não temos muita ideia de como e onde esse processo se dá.
Sendo bem francos: a parte mais substancial do trabalho dos catadores é invisibilizada, e aquela que parece acaba gerando compaixão, mas não nos mobiliza muito: o máximo que fazemos é sermos educados e solícitos ao entregar as latinhas nas mãos desses homens e mulheres.
Tudo isso para dizer o óbvio: um projeto sustentável que não leva em consideração o trabalho e a critério por condições minimamente dignas dos catadores é falho em sua essência. Sustentabilidade que descarta pessoas, principalmente pobres e negras, é apenas outro nome para racismo ambiental.
Antes que nosso planeta seja a ponto de tornar uma vida humana insustentável, famílias de catadores podem morrer de fome. Uma contradição trágica que diz muito sobre o nosso tempo, e que exige que as ações do Estado, mesmo quando bem-intencionadas, devam colocar os direitos dos trabalhadores em primeiro lugar na formulação de políticas públicas sobre reciclagem.
Pois é, todo Carnaval tem seu fim. E precisamos decidir para onde vai o lixo que produzimos nele e em todo o restante do ano.
A sorte é que caminhos já foram traçados. E um bom começo é enxergar, escutar e aprender com os trabalhadores que vêm coletando nosso lixo há tanto tempo.
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