sábado, 17 de fevereiro de 2024

Favela e democracia

Cidade colonial e Corte de um Império escravocrata, o Rio de Janeiro produz um tipo peculiar de segregação urbana, que faz das favelas uma forma racializada de configuração urbana, por isso mesmo fartamente instrumentalizada como antítese da cidade, um lugar habitado por um “outro”, contra o qual se opõe um ideal de cidade europeia e branca. A esse passivo histórico, devemos a crônica estigmatização da favela, que sustenta toda sorte de violência contra a sua população: da privação de saneamento à exposição a grupos armados paramilitares e às repetitivas incursões policiais, que em nada alteram esse quadro, mas que deixam um triste saldo de mortes e de traumas.


Para superarmos esse passado e imaginarmos um outro futuro, um primeiro passo é reconhecer que os que mais cultivam a democracia na cidade estão nas favelas e periferias. Mais especificamente, em seus coletivos e organizações que, há décadas, e cotidianamente, vêm lutando pelo direito a vida, educação, saúde, saneamento, cultura e outros direitos urbanos. Um segundo passo é reconhecer que são justamente eles os mais ameaçados pela simbiose em curso entre milícia e narcotráfico.

Diante desses grupos que controlam o acesso a bens de consumo nas favelas (inclusive a habitação) e que reúnem grande poder armamentista e penetração no sistema político, as trincheiras de defesa da cidade democrática no coração das favelas tendem a ficar cada vez mais vulneráveis. Daí que o cerco à narcomilícia não deva se reduzir ao necessário trabalho policial, que tem avançado com a bem-vinda participação da Polícia Federal. Para defender a democracia, também precisaremos conferir atenção especial aos danos que a narcomilícia produz no tecido da sociedade civil.

Historicamente, o Rio vem construindo redes envolvendo universidades, instituições de pesquisa e organizações de favelas e periferias. É relevante que, recentemente, Faperj e Fiocruz venham abrindo editais voltados para tais organizações. A isso se juntam trabalhos já sólidos de inúmeras organizações, de que são bons exemplos a Casa Fluminense, a Redes da Maré, o Grupo ECO Santa Marta, o Instituto Maria e João Aleixo e uma gama diversa de iniciativas como o Dicionário de Favelas Marielle Franco, o Plano do CPX, a Expo Favela e o recém-criado Centro de Pesquisas PUC-Rio – Rocinha (Unir).

Essas organizações e iniciativas, e muitas outras não citadas, evidenciam que o Rio dispõe de um consistente capital social e político, formado em torno de redes horizontais, que vivificam o compromisso com a universalização do direito aos bens de cidade e que contribuem para romper com a segregação urbana derivada do estigma da favela. Mas é preciso investir mais na sinergia entre essas ações e apostar em seu caráter estratégico. Fortalecidas, essas redes contribuem para a agenda antirracista e erguem barreiras simbólicas e políticas em face da expansão da narcomilícia que, com sua lógica mafiosa de extração de lucro e concentração de poder, afronta a cidade e a democracia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário