sábado, 17 de fevereiro de 2024

O fugidio deixa-se apanhar

Os deveres do cronista suportam-se bem porque é ele que decide quais são.

Um desses deveres é detectar o fugidio. À nossa volta, estão paisagens e modos de vida que ainda não sabem que estão a morrer. Temos de apanhá-los antes que morram. Não é um prazer mórbido. É uma despedida.

Sente-se quando se vai a um quiosque comprar jornais e todos os outros clientes estão a comprar boletins de apostas.

As coisas fugidias estão numa espécie de Outono tardio. Ainda há sol. Ainda há tempo. Precisamos é de lá estar. Quando uma coisa boa – ou mesmo má – desaparece de repente, é sinal de que os nossos detectores não estão a funcionar.


Todas as mortes são anunciadas. Nós é que não sabemos ler os anúncios.

Há quem se vicie em chorar o que já não existe. É quase como se esperassem pacientemente que as coisas desaparecessem, para poderem entrar em acção, como carpideiras à porta do cemitério, a pôr pingos nos olhos enquanto consultam os telemóveis, à espera que morra alguém.

É mais triste do que se pensa. O fugidio deixa-se apanhar. Precisa de nós: está a morrer. Se calhar, ainda pensa que pode sobreviver. Conta connosco para a renascença.

Não é azar, nem a maldade dos tempos sequer. As coisas vivas têm tempos de vida. Umas são borboletas e morrem muito depressa: a morte faz parte da beleza delas. Outras são tartarugas e morrem muito devagar: deixamo-nos irremediavelmente distrair, porque morremos antes delas.

O fugidio pode ser uma coisa má: um saco de plástico para transportar uma alface, uma aceleração escusada num automóvel, a pressa de despejar o lixo todo num contentor para lixo indiferenciado.

Para aproveitar enquanto se pode, primeiro é preciso detectar o que nos está a fugir.

“Já fui tarde” é o nome do nosso fado. “Quando cheguei, já tinha fechado” é sempre o primeiro verso. Não é coisa de velhos nem de saudosistas: cada vez há mais crianças que estão a deixar fugir a infância, sem saber aproveitá-la.

É preciso apanhar o fugidio.

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