sexta-feira, 29 de dezembro de 2023
Morrendo pela boca
O fim de ano tem seus perigos particulares. Tudo parece meio elétrico. As pessoas ficam impacientes, querem chegar logo, andam e dirigem de qualquer jeito. Outro dia, aqui no Rio, vi um mensageiro carregando uma bandeja de rabanadas ser atropelado por uma motocicleta ao atravessar a rua no meio dos carros. Nada de muito grave, mas as rabanadas foram literalmente para o espaço. Essa sofreguidão vem de longe: foi num Natal que o famoso rei inglês João (1167-1216), contemporâneo de Robin Hood, morreu de indigestão de lampreias. Já o nosso Luiz Gonçalves dos Santos (1767-1844), importante historiador do Brasil Imperial, mais conhecido como padre Perereca, morreu de indigestão de carambola.
O problema, no fundo, está em tudo que entra pela boca em qualquer época do ano. Agátocles (361-289 a.C.), governante de Siracusa, morreu engasgado com um palito. E Cláudio, imperador de Roma (10 a.C.-54 d.C.), ao constatar que sua mulher estava lhe servindo cogumelos envenenados, desesperou-se e introduziu uma pena na garganta para induzir vômito. Morreu também engasgado com ela.
Veneno ---cicuta--- foi o que ingeriu o filósofo ateniense Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), preso por motivos políticos e condenado a "suicidar-se". Era tão amado pelos jovens que os juízes não ousaram executá-lo. Sócrates poderia ter fugido, mas preferiu cumprir a sentença por "respeito às leis de Atenas", e bebeu a cicuta de um gole. Foi. Já o romancista britânico Graham Greene (1904-91), católico cheio de culpa e angústias, tentou se matar bebendo colírio. Como fracassou, preferiu viver. Sorte nossa.
E, falando em final feliz, Chita (1930-91), o chimpanzé capturado em bebê na África e levado para Hollywood, já era louco por banana em seu habitat. Mas foi na MGM, vendo seu colega Johnny Weissmuller, o Tarzan, comendo uma, que descobriu que ela era ainda mais gostosa sem casca.
O problema, no fundo, está em tudo que entra pela boca em qualquer época do ano. Agátocles (361-289 a.C.), governante de Siracusa, morreu engasgado com um palito. E Cláudio, imperador de Roma (10 a.C.-54 d.C.), ao constatar que sua mulher estava lhe servindo cogumelos envenenados, desesperou-se e introduziu uma pena na garganta para induzir vômito. Morreu também engasgado com ela.
Veneno ---cicuta--- foi o que ingeriu o filósofo ateniense Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), preso por motivos políticos e condenado a "suicidar-se". Era tão amado pelos jovens que os juízes não ousaram executá-lo. Sócrates poderia ter fugido, mas preferiu cumprir a sentença por "respeito às leis de Atenas", e bebeu a cicuta de um gole. Foi. Já o romancista britânico Graham Greene (1904-91), católico cheio de culpa e angústias, tentou se matar bebendo colírio. Como fracassou, preferiu viver. Sorte nossa.
E, falando em final feliz, Chita (1930-91), o chimpanzé capturado em bebê na África e levado para Hollywood, já era louco por banana em seu habitat. Mas foi na MGM, vendo seu colega Johnny Weissmuller, o Tarzan, comendo uma, que descobriu que ela era ainda mais gostosa sem casca.
Um banco laranja
Quando era discreto o charme da burguesia, as casas bancárias eram discretas também. Seus donos se compraziam no anonimato. No máximo, permitiam que gravassem, em letras de bronze, pequenas, o nome do estabelecimento na fachada lateral do edifício, sem espalhafato. Bastava um sobrenome, um topônimo, nada mais. O comércio do dinheiro se fazia em silêncio. Banqueiros fugiam dos holofotes e dos logotipos vistosos. Não queriam nada com a fama. A fortuna os satisfazia.
Agora, a paisagem fiduciária mudou. Olhando para os comerciais de banqueiros na TV, a gente até se espanta. Há peças verdadeiramente espetaculares – espetacular, aqui, no sentido que o filósofo Guy Debord emprestou à palavra (emprestou sem juros): “O espetáculo é o capital em tamanho grau de acumulação que se torna imagem”. Os efeitos especiais de vídeo valem mais do que mil letras de câmbio. A pecúnia perdeu a inibição. O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você.
As empresas que mercadejam bufunfa ofertam paixão para saciar a demanda do cliente. Desejam emprestar sentido à subjetividade do freguês (neste caso, “emprestar” com juros). Pretendem carimbar um logotipo nos sonhos pessoais que você acalenta, nos seus projetos. Querem ser sócias das modestas cobiças dos milhões de seres que portam cartões de crédito no bolso ou no celular. Bancos, agora, têm sex appeal.
Nestes dias em que espoucam as fluorescências festivas de final de ano, uma dessas organizações privadas, com agências instaladas em cidades e cidadezinhas, vem divulgando filmes promocionais para nos dizer que seu coração é “feito de futuro”. A campanha é bem-feita. O slogan, realmente espetacular (com royalties imateriais para Guy Debord). Um achado publicitário, uma fórmula convidativa para celebrar o réveillon.
Todo mundo tem, bem lá no fundo da alma endividada, a aspiração de ter lugar no futuro. Todo mundo almeja habitar o futuro. E, apresentada dessa forma tentadora, a ideia de um banco “feito de futuro” vem investida de força mágica, anímica, principalmente quando nos faz crer que ser “feito de futuro” é uma ambição que não cobra de ninguém o preço de jogar fora o passado. Futuro e passado se dão as mãos e se fortalecem, segundo o mantra do comercial, que, com isso, consegue fisgar a imaginação de quem quer perder nem o passado, nem o futuro, nem o presente.
Para melhor propagar sua receita de fusão temporal, o anunciante financeiro contratou a atriz Fernanda Montenegro, cuja magnitude paira acima do tempo. Com uma história pessoal mais rica do que todo o capital financeiro de todo o século 20, acrescido aí o primeiro quinto do século 21, a grande dama das artes brasileiras declara que nasceu e renasceu muitas vezes, na pele das personagens que encarnou. Ela convence e arrebata. Como suas personagens fazem parte da memória afetiva de tanta gente, o espectador, sedento de esperança, ávido por uma fábula que dê conta de renovar suas energias depreciadas, aceita se emocionar.
O comercial foi gravado num teatro espaçoso e sóbrio. O lugar está vazio. Não está propriamente às escuras; muitos pontos de luz em tons quentes, pontilhando as frisas, criam um ambiente de aconchego. Na fala cadenciada, a biografia da atriz vai se entrelaçando com a história do banco que a contratou. Ela declama frases fortes: “Eu me transformei muitas vezes para ser eu mesma”. O duplo sentido logo se estabelece. Será que fala de si? Ou será que fala da banca?
“Me fiz pedra”, ela diz, mas logo trata de qualificar: “Em movimento”. A ênfase que ela aporta a este “em movimento” elucida tudo. Ela se refere a uma pedra que rola, que não se acomoda. O gesto das mãos, com os indicadores girando um em torno do outro, reforçam a mensagem já impregnada ao imaginário contemporâneo: rocha (rock) e mudança (and roll).
A partir daí, a ambiguidade dá lugar a propaganda desinibida. A rocha tem menos que ver com a grande dama do que com a avantajada empresa bancária. Itaú, como se sabe, significa “pedra preta” em tupi-guarani. E essa rocha pretende “atravessar o tempo” – mudando a cor. A pedra preta não quer mais ser preta. A pedra preta quer ser laranja.
A palavra “laranja”, porém, traz um constrangimento, por assim dizer, discreto. Quando associado a operações contábeis, o termo designa uma fraude: o “laranja” é alguém que empresta o nome (a troco de uma ninharia) para um negócio que beneficiará um espertalhão, cujo nome não vai aparecer. Se é assim, por que um banco faz tanta publicidade para ser visto como laranja? Muito simples: para ser dono de uma cor quente, positiva, e, com ela, simplificar sua comunicação. Você vai ver essa frequência cromática e vai pensar naquela agência bancária.
Laranja, por que não? Há cores piores. Há concorrentes que são vermelhos, e não há correntista que proteste quando deposita seus caraminguás no vermelho. Ninguém liga que a conta fique no vermelho. Então, viva o laranja. Se você fizer as contas, verá que vai sair barato.
Agora, a paisagem fiduciária mudou. Olhando para os comerciais de banqueiros na TV, a gente até se espanta. Há peças verdadeiramente espetaculares – espetacular, aqui, no sentido que o filósofo Guy Debord emprestou à palavra (emprestou sem juros): “O espetáculo é o capital em tamanho grau de acumulação que se torna imagem”. Os efeitos especiais de vídeo valem mais do que mil letras de câmbio. A pecúnia perdeu a inibição. O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você.
As empresas que mercadejam bufunfa ofertam paixão para saciar a demanda do cliente. Desejam emprestar sentido à subjetividade do freguês (neste caso, “emprestar” com juros). Pretendem carimbar um logotipo nos sonhos pessoais que você acalenta, nos seus projetos. Querem ser sócias das modestas cobiças dos milhões de seres que portam cartões de crédito no bolso ou no celular. Bancos, agora, têm sex appeal.
Nestes dias em que espoucam as fluorescências festivas de final de ano, uma dessas organizações privadas, com agências instaladas em cidades e cidadezinhas, vem divulgando filmes promocionais para nos dizer que seu coração é “feito de futuro”. A campanha é bem-feita. O slogan, realmente espetacular (com royalties imateriais para Guy Debord). Um achado publicitário, uma fórmula convidativa para celebrar o réveillon.
Todo mundo tem, bem lá no fundo da alma endividada, a aspiração de ter lugar no futuro. Todo mundo almeja habitar o futuro. E, apresentada dessa forma tentadora, a ideia de um banco “feito de futuro” vem investida de força mágica, anímica, principalmente quando nos faz crer que ser “feito de futuro” é uma ambição que não cobra de ninguém o preço de jogar fora o passado. Futuro e passado se dão as mãos e se fortalecem, segundo o mantra do comercial, que, com isso, consegue fisgar a imaginação de quem quer perder nem o passado, nem o futuro, nem o presente.
Para melhor propagar sua receita de fusão temporal, o anunciante financeiro contratou a atriz Fernanda Montenegro, cuja magnitude paira acima do tempo. Com uma história pessoal mais rica do que todo o capital financeiro de todo o século 20, acrescido aí o primeiro quinto do século 21, a grande dama das artes brasileiras declara que nasceu e renasceu muitas vezes, na pele das personagens que encarnou. Ela convence e arrebata. Como suas personagens fazem parte da memória afetiva de tanta gente, o espectador, sedento de esperança, ávido por uma fábula que dê conta de renovar suas energias depreciadas, aceita se emocionar.
O comercial foi gravado num teatro espaçoso e sóbrio. O lugar está vazio. Não está propriamente às escuras; muitos pontos de luz em tons quentes, pontilhando as frisas, criam um ambiente de aconchego. Na fala cadenciada, a biografia da atriz vai se entrelaçando com a história do banco que a contratou. Ela declama frases fortes: “Eu me transformei muitas vezes para ser eu mesma”. O duplo sentido logo se estabelece. Será que fala de si? Ou será que fala da banca?
“Me fiz pedra”, ela diz, mas logo trata de qualificar: “Em movimento”. A ênfase que ela aporta a este “em movimento” elucida tudo. Ela se refere a uma pedra que rola, que não se acomoda. O gesto das mãos, com os indicadores girando um em torno do outro, reforçam a mensagem já impregnada ao imaginário contemporâneo: rocha (rock) e mudança (and roll).
A partir daí, a ambiguidade dá lugar a propaganda desinibida. A rocha tem menos que ver com a grande dama do que com a avantajada empresa bancária. Itaú, como se sabe, significa “pedra preta” em tupi-guarani. E essa rocha pretende “atravessar o tempo” – mudando a cor. A pedra preta não quer mais ser preta. A pedra preta quer ser laranja.
A palavra “laranja”, porém, traz um constrangimento, por assim dizer, discreto. Quando associado a operações contábeis, o termo designa uma fraude: o “laranja” é alguém que empresta o nome (a troco de uma ninharia) para um negócio que beneficiará um espertalhão, cujo nome não vai aparecer. Se é assim, por que um banco faz tanta publicidade para ser visto como laranja? Muito simples: para ser dono de uma cor quente, positiva, e, com ela, simplificar sua comunicação. Você vai ver essa frequência cromática e vai pensar naquela agência bancária.
Laranja, por que não? Há cores piores. Há concorrentes que são vermelhos, e não há correntista que proteste quando deposita seus caraminguás no vermelho. Ninguém liga que a conta fique no vermelho. Então, viva o laranja. Se você fizer as contas, verá que vai sair barato.
O futuro
Certa feita, Astrud Gilberto, João Donato e eu vínhamos de um estúdio de gravação, em Nova Iorque, quando passando por uma rua vimos uma cigana num sobrado e resolvemos consultá-la. Donato foi o primeiro a sentar-se frente a ela que, tomando-lhe a mão, disse: "Vou ler o seu passado." E Donato, com aquele ar perdido e olhar esgazeado, retrucou: "Não, gipsy, o passado eu já conheço. Fale do futuro." Desconcertada, a cigana voltou-se para nós e confidenciou: "Ele é maluco..." Claro. Só a loucura poderia ser tão lúcida. De uma tacada, Donato descartara o passado. Quantos, para exorcizá-lo, necessitam recorrer à psicanálise ou mesmo às autobiografias...
Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."
Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.
É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.
Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.
Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."
Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.
Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.
É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.
Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.
Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Carlos Lyra
Humor macabro
Os anúncios da imobiliária Harey Zahav para lotes de “pré-venda” em Gaza e os planos para “preparar as bases para um regresso” ao enclave pretendiam ser “uma piada” para os seus seguidores, mas inadvertidamente causaram um escândalo internacional
A imobiliária israelense, que trabalha principalmente em projetos na Cisjordânia, causou uma tempestade internacional quando publicou um anúncio em suas páginas de mídia social dizendo que está "preparando as bases para um retorno a Gush Katifa".
Gaza-Belém-Jerusalém, dezembro
“Perdi a minha casa. A casa da minha família. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Estamos num estado horrífico."
Na noite de Natal eu estava na Praça da Basílica da Natividade (Belém, Cisjordânia Ocupada) com o telefone na mão quando chegou um áudio do meu amigo de muitos anos em Gaza, a quem chamei W. na primeira crônica para o PÚBLICO depois de 7 de outubro.
Durante semanas, enquanto eu ainda estava em Portugal, partilhei nas redes sociais mensagens trocadas com W., para que as pessoas tivessem um acesso direto às palavras (e por vezes imagens) dele. W. não estudou jornalismo, vem das ciências, mas é um observador nato, cabeça e coração. Trabalhou comigo em Gaza como tradutor e guia para muitas reportagens neste jornal. Vi as três filhas dele crescer, passei a ficar com a família quando estava em Gaza.
As filhas (e a mãe delas) já moravam noutros países a 7 de Outubro. W. estava na sua casa da Cidade de Gaza, com as sequelas físicas de ter sido preso e torturado pelo Hamas, como contei nessa primeira crónica. Incluindo ter dificuldade para andar. Mas os bombardeios de Israel forçaram-no a deixar a sua casa e ir para sul, como mais de um milhão de pessoas. Passou muito tempo acampado no exterior de um hospital em Deir Al-Balah, a meio da Faixa, com a família da irmã, que ele foi ajudar a tirar dos escombros, depois de um bombardeio. Entre as imagens que me mandou, vi a irmã, tão parecida com ele, cheia de escoriações, e uma das netas dela, sobrinha-neta de W., uma menina linda em estado de choque, também com feridas na cara, e a mão ligada. Ela quase perdeu a mão. Foi operada naquelas condições terríveis, tiraram tecido de outra parte do corpo.adora esta sobrinha-neta e também me mandou alguns dos desenhos que ambos faziam, acampados ali, com tão pouca comida, água, higiene. E depois veio o frio, a chuva, tendas de plástico, sem roupa de Inverno. E mais fome, cada vez mais fome. Desidratação. Doenças. W. decidiu ir a outra zona, Nusseirat, tentar arranjar comida, mas com o avanço da invasão terrestre, além das bombas, não conseguiu voltar para junto da família.
Cheguei a Jerusalém Oriental na noite de 10 para 11 de dezembro e desde então não tive notícias de W. Tentou ligar uma vez, depois não respondeu, desencontramo-nos. Eu não sabia onde ele estava. Se estava.
Nas primeiras semanas da guerra, por vezes a primeira mensagem dele era: “Am still alive” (“Estou vivo”) Como também as mensagens de R., jornalista profissional com quem trabalhei em 2017, a última vez que fiz reportagem em Gaza. Quem siga os palestinos nas redes reconhecerá estas palavras. Os milhões de seguidores, por exemplo, de Bisan, 25 anos, habituaram-se a começar o dia assim. Ela, eles, todas estas pessoas que são a nossa linha de vida com Gaza.
Ou a nossa linha da vida, mesmo.
Então, ao fim de 15 dias sem saber nada de W., aquele áudio caiu ali na noite de Natal, exatamente às 20h03, e pela primeira vez desde 7 de outubro trocamos mensagens estando ambos na Palestina.
Vou transcrever aqui as palavras dele que foram aparecendo no ecrã, mensagem a mensagem:
“Ainda estou funcional. A guerra está no seu auge. Perdi a minha casa. A casa da minha família também. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Perdi contacto com aquele meu irmão que não tinha qualquer possibilidade de deixar Gaza. O IDF [Forças de Israel] está deliberadamente a forçar dois milhões e meio à fome e à sede. Estamos num estado horrífico. Figuras como zombies. Ainda estou em Nusseirat. O IDF exigiu que partíssemos daqui, mas o deadline de 72 horas acabou esta noite. Não há transportes, querida amiga. Tentei tudo o que podia para partir ontem e hoje. Vamos ver o que acontece amanhã. Espero conseguir chegar a Deir Al Balah amanhã.”
Quando lhe digo que estou em Belém, e toda a Belém está com Gaza, sem celebrar o Natal, pela primeira vez na sua história, ele responde: “Take care, dear friend.” E promete não perder a esperança. “Never. Inshallah.”
Eram 21h30. Já eu estava junto da incubadora com um Jesus queimado pelas bombas em Gaza que uma artista palestiniana instalou diante da missa de Natal. Não tenho mais notícias de W. até ao momento em que escrevo esta crónica, já em Jerusalém Oriental (Palestina Ocupada), dos lugares mais belos e tristes do mundo. E antes de a terminar, como se adivinhasse, escreve-me R., o outro amigo de Gaza, que há muito não respondia.
Transcrevo as mensagens dele:
“Bombardeio em Maghazi [junto a Deir Al Balah], não muito longe de mim, decidi sair daqui, mas não acho um lugar onde ficarmos. Parece que eu e os meus filhos vamos dormir na rua, não há um lugar em Gaza. Muita gente começou a fugir, estou a tentar, mas não sei para onde ir.”
Quantas vezes já os palestinos disseram isto a alguém, ou teriam dito, se houvesse WhatsApp, a meio de mais um bombardeio, mais um deslocamento, mais um êxodo, desde muito antes de R., W. ou eu termos nascido. E todos já temos cabelos brancos.
A minha última resposta para cada um está só com um tracinho.
Na noite de Natal eu estava na Praça da Basílica da Natividade (Belém, Cisjordânia Ocupada) com o telefone na mão quando chegou um áudio do meu amigo de muitos anos em Gaza, a quem chamei W. na primeira crônica para o PÚBLICO depois de 7 de outubro.
Durante semanas, enquanto eu ainda estava em Portugal, partilhei nas redes sociais mensagens trocadas com W., para que as pessoas tivessem um acesso direto às palavras (e por vezes imagens) dele. W. não estudou jornalismo, vem das ciências, mas é um observador nato, cabeça e coração. Trabalhou comigo em Gaza como tradutor e guia para muitas reportagens neste jornal. Vi as três filhas dele crescer, passei a ficar com a família quando estava em Gaza.
As filhas (e a mãe delas) já moravam noutros países a 7 de Outubro. W. estava na sua casa da Cidade de Gaza, com as sequelas físicas de ter sido preso e torturado pelo Hamas, como contei nessa primeira crónica. Incluindo ter dificuldade para andar. Mas os bombardeios de Israel forçaram-no a deixar a sua casa e ir para sul, como mais de um milhão de pessoas. Passou muito tempo acampado no exterior de um hospital em Deir Al-Balah, a meio da Faixa, com a família da irmã, que ele foi ajudar a tirar dos escombros, depois de um bombardeio. Entre as imagens que me mandou, vi a irmã, tão parecida com ele, cheia de escoriações, e uma das netas dela, sobrinha-neta de W., uma menina linda em estado de choque, também com feridas na cara, e a mão ligada. Ela quase perdeu a mão. Foi operada naquelas condições terríveis, tiraram tecido de outra parte do corpo.adora esta sobrinha-neta e também me mandou alguns dos desenhos que ambos faziam, acampados ali, com tão pouca comida, água, higiene. E depois veio o frio, a chuva, tendas de plástico, sem roupa de Inverno. E mais fome, cada vez mais fome. Desidratação. Doenças. W. decidiu ir a outra zona, Nusseirat, tentar arranjar comida, mas com o avanço da invasão terrestre, além das bombas, não conseguiu voltar para junto da família.
Cheguei a Jerusalém Oriental na noite de 10 para 11 de dezembro e desde então não tive notícias de W. Tentou ligar uma vez, depois não respondeu, desencontramo-nos. Eu não sabia onde ele estava. Se estava.
Nas primeiras semanas da guerra, por vezes a primeira mensagem dele era: “Am still alive” (“Estou vivo”) Como também as mensagens de R., jornalista profissional com quem trabalhei em 2017, a última vez que fiz reportagem em Gaza. Quem siga os palestinos nas redes reconhecerá estas palavras. Os milhões de seguidores, por exemplo, de Bisan, 25 anos, habituaram-se a começar o dia assim. Ela, eles, todas estas pessoas que são a nossa linha de vida com Gaza.
Ou a nossa linha da vida, mesmo.
Então, ao fim de 15 dias sem saber nada de W., aquele áudio caiu ali na noite de Natal, exatamente às 20h03, e pela primeira vez desde 7 de outubro trocamos mensagens estando ambos na Palestina.
Vou transcrever aqui as palavras dele que foram aparecendo no ecrã, mensagem a mensagem:
“Ainda estou funcional. A guerra está no seu auge. Perdi a minha casa. A casa da minha família também. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Perdi contacto com aquele meu irmão que não tinha qualquer possibilidade de deixar Gaza. O IDF [Forças de Israel] está deliberadamente a forçar dois milhões e meio à fome e à sede. Estamos num estado horrífico. Figuras como zombies. Ainda estou em Nusseirat. O IDF exigiu que partíssemos daqui, mas o deadline de 72 horas acabou esta noite. Não há transportes, querida amiga. Tentei tudo o que podia para partir ontem e hoje. Vamos ver o que acontece amanhã. Espero conseguir chegar a Deir Al Balah amanhã.”
Quando lhe digo que estou em Belém, e toda a Belém está com Gaza, sem celebrar o Natal, pela primeira vez na sua história, ele responde: “Take care, dear friend.” E promete não perder a esperança. “Never. Inshallah.”
Eram 21h30. Já eu estava junto da incubadora com um Jesus queimado pelas bombas em Gaza que uma artista palestiniana instalou diante da missa de Natal. Não tenho mais notícias de W. até ao momento em que escrevo esta crónica, já em Jerusalém Oriental (Palestina Ocupada), dos lugares mais belos e tristes do mundo. E antes de a terminar, como se adivinhasse, escreve-me R., o outro amigo de Gaza, que há muito não respondia.
Transcrevo as mensagens dele:
“Bombardeio em Maghazi [junto a Deir Al Balah], não muito longe de mim, decidi sair daqui, mas não acho um lugar onde ficarmos. Parece que eu e os meus filhos vamos dormir na rua, não há um lugar em Gaza. Muita gente começou a fugir, estou a tentar, mas não sei para onde ir.”
Quantas vezes já os palestinos disseram isto a alguém, ou teriam dito, se houvesse WhatsApp, a meio de mais um bombardeio, mais um deslocamento, mais um êxodo, desde muito antes de R., W. ou eu termos nascido. E todos já temos cabelos brancos.
A minha última resposta para cada um está só com um tracinho.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Devaneios são permitidos
Não é que falte assunto de relevo neste final de ano — a Humanidade, mais uma vez, não caminhou rumo ao que dela era esperado. Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros, estreitado nossa interdependência como passageiros de um mesmo mundo, confirmado a relação paradoxal entre distância espacial e proximidade emocional. Não foi bem isso que ocorreu em 2023. Mas é justamente em período de início de férias, com festejos a todo vapor e desatenção geral típica de véspera de Natal, que devaneios são permitidos — ótima oportunidade para poder divagar sobre algo impalpável, evanescente e atemporal, apenas bonito: a cor azul e nossos estados d’alma.
Wassily Kandinsky, William Gass (“On being blue”), Carl Sagan, Goethe, Maggie Nelson (“The colour blue as a lens on memory and loneliness...”), Maria Popova e Leonardo da Vinci são apenas alguns dos pintores e naturalistas, escritores, pensadores ou poetas que se debruçaram sobre essa que é chamada de “a cor da mente emprestada ao corpo, a cor da consciência quando a acariciamos”. Para a ensaísta americana Rebecca Solnit, autora de uma elegante reflexão sobre como encontrar a si mesmo no desconhecido (“Um guia para se perder”, Martins Fontes, 2022), a relação entre o azul, a melancolia e a solidão humanas está por toda parte onde há distância e desejo.
Percebido como azul nas suas bordas e profundezas quando observado no espaço sideral, nosso planetinha vai perdendo sua luz à medida que nos aproximamos dele. A cor dispersa-se entre as moléculas do ar, dispersa-se na água (incolor só quando rasa, azul quando o mar é profundo), dispersa-se no céu e na terra. “Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas”, escreveu Solnit para relacionar desejo e distância. Tratamos o desejo como um problema a resolver, enquanto o que intriga a autora é algo distinto: e se, com um ligeiro ajuste de perspectiva, o desejo pudesse ser apreciado como uma sensação em seus próprios termos? Se conseguíssemos olhar para longe sem querer diminuir a distância, talvez pudéssemos dar conta de nossos desejos da mesma forma como amamos a beleza de um azul que nunca poderá ser alcançado. “Algo desse anseio será apenas realocado pela proximidade, jamais apaziguado, assim como as montanhas deixam de ser azuis quando chegamos perto delas. O azul tingirá algum outro além. E nisso reside o mistério de por que as tragédias são sempre mais belas que as comédias e de por que temos tanto prazer na tristeza de certas canções e histórias. Algo estará sempre fora do nosso alcance”, teoriza Solnit.
No mundo das espécies que vivem abaixo de nossa atmosfera avermelhada, o azul é raridade, assim como é inexistente um pigmento natural dessa cor. Como não se surpreender com a escassez de alimentos azuis produzidos pela terra, quando abundam os vermelhos, amarelos, marrons ou verdejantes? Poucas são, também, as plantas que florescem em azul. E os raros pássaros e borboletas dotados de plumagem azulada devem esse privilégio a uma singular refração da luz em suas penas, de forma a cancelar qualquer raio que não seja azul. Amamos contemplar o azul não porque ele vem até nós, mas porque ele nos leva longe, já observara Goethe em sua teoria de cor e emoção. Clarice Lispector concordaria. “O azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul”, escreveu ela.
Se somos tantos a amar o azul, vale tentar o inalcançável — 2024 vem a galope.
Wassily Kandinsky, William Gass (“On being blue”), Carl Sagan, Goethe, Maggie Nelson (“The colour blue as a lens on memory and loneliness...”), Maria Popova e Leonardo da Vinci são apenas alguns dos pintores e naturalistas, escritores, pensadores ou poetas que se debruçaram sobre essa que é chamada de “a cor da mente emprestada ao corpo, a cor da consciência quando a acariciamos”. Para a ensaísta americana Rebecca Solnit, autora de uma elegante reflexão sobre como encontrar a si mesmo no desconhecido (“Um guia para se perder”, Martins Fontes, 2022), a relação entre o azul, a melancolia e a solidão humanas está por toda parte onde há distância e desejo.
Percebido como azul nas suas bordas e profundezas quando observado no espaço sideral, nosso planetinha vai perdendo sua luz à medida que nos aproximamos dele. A cor dispersa-se entre as moléculas do ar, dispersa-se na água (incolor só quando rasa, azul quando o mar é profundo), dispersa-se no céu e na terra. “Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas”, escreveu Solnit para relacionar desejo e distância. Tratamos o desejo como um problema a resolver, enquanto o que intriga a autora é algo distinto: e se, com um ligeiro ajuste de perspectiva, o desejo pudesse ser apreciado como uma sensação em seus próprios termos? Se conseguíssemos olhar para longe sem querer diminuir a distância, talvez pudéssemos dar conta de nossos desejos da mesma forma como amamos a beleza de um azul que nunca poderá ser alcançado. “Algo desse anseio será apenas realocado pela proximidade, jamais apaziguado, assim como as montanhas deixam de ser azuis quando chegamos perto delas. O azul tingirá algum outro além. E nisso reside o mistério de por que as tragédias são sempre mais belas que as comédias e de por que temos tanto prazer na tristeza de certas canções e histórias. Algo estará sempre fora do nosso alcance”, teoriza Solnit.
No mundo das espécies que vivem abaixo de nossa atmosfera avermelhada, o azul é raridade, assim como é inexistente um pigmento natural dessa cor. Como não se surpreender com a escassez de alimentos azuis produzidos pela terra, quando abundam os vermelhos, amarelos, marrons ou verdejantes? Poucas são, também, as plantas que florescem em azul. E os raros pássaros e borboletas dotados de plumagem azulada devem esse privilégio a uma singular refração da luz em suas penas, de forma a cancelar qualquer raio que não seja azul. Amamos contemplar o azul não porque ele vem até nós, mas porque ele nos leva longe, já observara Goethe em sua teoria de cor e emoção. Clarice Lispector concordaria. “O azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul”, escreveu ela.
Se somos tantos a amar o azul, vale tentar o inalcançável — 2024 vem a galope.
O tempo da solidariedade
O dito segundo o qual todas as épocas estão a igual distância de Deus muito provavelmente já não nos serve pelo menos desde que se abriu a era atômica. Em linguagem secular, a ser verdade o dito, os tempos valem uns pelos outros, os males são aproximadamente os mesmos, as atribulações humanas essencialmente não se alteram – e beiram o absurdo. A partir de Hiroshima e Nagasaki, no entanto, passamos a carregar um peso infinitamente maior derivado da possibilidade de autodestruição do planeta e da espécie. E, agora, a aceleração vertiginosa inerente à condição pós-moderna, ou hipermoderna, acena para o fato de que a cada dia nos tornamos ainda mais perigosos para nós mesmos. Estaremos, pois, a uma distância maior de Deus.
Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.
É que os operários industriais nunca foram a maioria da população, como em algum momento se esperava que fossem. O movimento socialista, no seu todo, revestiu o mundo do trabalho de uma inédita dignidade, mas os operários, como tais, mesmo civilizando com lutas e sacrifícios a sociedade do capital, não podiam ser uma classe dotada de universalidade. E por um motivo simples: classes e partidos são intrinsecamente realidades parciais e não portam em si a redenção humana.
Deixemos de lado o marxismo tornado ideologia de Estado nos países que, entre 1917 e 1989, constituíram o “socialismo real”. Seu valor teórico é irrelevante ou, para falar a verdade, inexistente. Descrevendo uma realidade peculiaríssima, em que católicos e socialistas (comunistas), religiosos e leigos se entenderam e desentenderam por décadas, o filósofo italiano Giuseppe Vacca tem apontado outro déficit da explicação marxista do mundo moderno. No segundo pós-guerra, só e unicamente na tradição da esquerda do seu país é que teria emergido a consciência embrionária, mas explosiva, da subestimação do fenômeno religioso. Esta consciência, presente destacadamente em Palmiro Togliatti, dirigente histórico do Partido Comunista Italiano e protagonista do “diálogo” estimulado pelo Concílio Vaticano 2.º, traria consigo a exigência de uma refundação radical do marxismo, até hoje por fazer.
Ao contrário do que supuseram os pais fundadores, nenhuma reconciliação harmoniosa dos homens, entre si e com a natureza, teria o condão de suprimir não só o comportamento religioso, como também, por óbvio, o limite da existência humana. Este limite, de resto, está na base de tal comportamento e, mais em geral, de toda inquietação humana, filosófica ou não. Em outras palavras, as religiões são uma constante antropológica, não uma forma transitória de alienação; uma objetivação essencial, não um acidente histórico circunscrito às sociedades de classe.
Para Togliatti, a cegueira do marxismo – da maior parte do imenso e contraditório corpus teórico que esta expressão recobre – decorre de uma assimilação apressada do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19, com suas respostas unívocas e, por isso, falsas para o problema do sentido, ou sentidos, da vida. Aqui, as respostas só podem ser múltiplas e diversificadas, desafiando-se naturalmente umas às outras. E a verdade está rigorosamente entre os homens – e com ninguém em particular, seja crente ou não.
Se isso for razoável, então o que há de socialismo no mundo – a social-democracia, o socialismo liberal, o trabalhismo, etc. –, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política (que só os radicais chamam de “burguesa”). Trata-se também de evitar a armadilha estendida pelo “paradigma tecnocrático” – termo de uma recente exortação do papa Francisco para indicar uma democracia sem raízes entre os “de baixo” – e reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões. Valores cuja vitalidade se acentua ainda mais nesta época do ano, propícia à generosidade e à fraternidade.
Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.
Por certo, as sociais-democracias clássicas, ainda em vida dos pais fundadores – Karl Marx e Friedrich Engels –, contribuíram para tornar mais complexa a vida política das sociedades em que atuaram, mas àquelas forças de vanguarda faltou a plena consciência do que faziam. Trouxeram os subalternos para a esfera pública, ajudaram a configurar a nova subjetividade de massas e a integrá-la socialmente, mas, ao mesmo tempo, o mito persistente da revolução proletária fazia o papel de uma bola de chumbo atada aos pés.
É que os operários industriais nunca foram a maioria da população, como em algum momento se esperava que fossem. O movimento socialista, no seu todo, revestiu o mundo do trabalho de uma inédita dignidade, mas os operários, como tais, mesmo civilizando com lutas e sacrifícios a sociedade do capital, não podiam ser uma classe dotada de universalidade. E por um motivo simples: classes e partidos são intrinsecamente realidades parciais e não portam em si a redenção humana.
Deixemos de lado o marxismo tornado ideologia de Estado nos países que, entre 1917 e 1989, constituíram o “socialismo real”. Seu valor teórico é irrelevante ou, para falar a verdade, inexistente. Descrevendo uma realidade peculiaríssima, em que católicos e socialistas (comunistas), religiosos e leigos se entenderam e desentenderam por décadas, o filósofo italiano Giuseppe Vacca tem apontado outro déficit da explicação marxista do mundo moderno. No segundo pós-guerra, só e unicamente na tradição da esquerda do seu país é que teria emergido a consciência embrionária, mas explosiva, da subestimação do fenômeno religioso. Esta consciência, presente destacadamente em Palmiro Togliatti, dirigente histórico do Partido Comunista Italiano e protagonista do “diálogo” estimulado pelo Concílio Vaticano 2.º, traria consigo a exigência de uma refundação radical do marxismo, até hoje por fazer.
Ao contrário do que supuseram os pais fundadores, nenhuma reconciliação harmoniosa dos homens, entre si e com a natureza, teria o condão de suprimir não só o comportamento religioso, como também, por óbvio, o limite da existência humana. Este limite, de resto, está na base de tal comportamento e, mais em geral, de toda inquietação humana, filosófica ou não. Em outras palavras, as religiões são uma constante antropológica, não uma forma transitória de alienação; uma objetivação essencial, não um acidente histórico circunscrito às sociedades de classe.
Para Togliatti, a cegueira do marxismo – da maior parte do imenso e contraditório corpus teórico que esta expressão recobre – decorre de uma assimilação apressada do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19, com suas respostas unívocas e, por isso, falsas para o problema do sentido, ou sentidos, da vida. Aqui, as respostas só podem ser múltiplas e diversificadas, desafiando-se naturalmente umas às outras. E a verdade está rigorosamente entre os homens – e com ninguém em particular, seja crente ou não.
Se isso for razoável, então o que há de socialismo no mundo – a social-democracia, o socialismo liberal, o trabalhismo, etc. –, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política (que só os radicais chamam de “burguesa”). Trata-se também de evitar a armadilha estendida pelo “paradigma tecnocrático” – termo de uma recente exortação do papa Francisco para indicar uma democracia sem raízes entre os “de baixo” – e reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões. Valores cuja vitalidade se acentua ainda mais nesta época do ano, propícia à generosidade e à fraternidade.
A força moral do perdão
Nossas famílias estão dilaceradas por disputas pessoais e divergências políticas. Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?
Sempre me surpreendo como a mensagem cristã mais basilar, de amor ao próximo e perdão aos inimigos, pode ser soterrada e obliterada no discurso de alguns pregadores por cobranças prepotentes. O cristianismo do nosso dia a dia está muito mais preocupado em policiar e condenar condutas —sobretudo as sexuais —do que em compreender, amar e perdoar.
Isso, para mim, é o avesso da mensagem cristã. Tendemos a ser duros com quem nos ofende e complacentes com nossos erros. O amor aos inimigos e o perdão às ofensas exigem atuar em sentido contrário: evitar julgar o próximo e ser mais severo com nossos próprios equívocos.
Jesus não escondeu a essência de sua mensagem. Disse para perdoar não apenas sete vezes, como já não conseguia o impaciente Pedro, mas 70 vezes sete. Disse para fazermos o bem a quem nos odeia e que se alguém nos ferir a face ofereçamos a outra. Disse para não respondermos ao mal com o mal e nem a ofensa com ofensa. A mensagem dos evangelhos é muito clara: devemos perdoar, compreender e não responder o mal com o mal. É uma exigência moral elevada, difícil de sustentar, mas é um norte que deveríamos nos esforçar por perseguir.
O perdão é uma força moral pujante. Desorganiza e reorienta as relações viciadas. Muitas vezes estamos presos em ciclos de ódio em nossas relações pessoais —e na política também. Vivemos respondendo com cotoveladas às cotoveladas que recebemos, num ciclo longo de ofensa e resposta, cuja origem se perde no tempo. Cada lado acha que há uma ofensa primordial justificando as respostas, assim o ciclo se sustenta envolvendo os dois lados numa espiral crescente que faz mal a todos. Sempre que respondemos ao mal com o mal, aumentamos a quantidade de mal no mundo. O perdão interrompe unilateralmente esse ciclo. Não quer nada em troca, não pede reciprocidade, não exige reparação ou desculpas. É um ato de generosidade, uma grandeza d’alma que, pela força moral, desconcerta e reorganiza a relação entre as partes. O perdão cura. E o perdão transforma.
Quem já perdoou ou recebeu perdão, o perdão genuíno, sabe como ele desarranja, depois reorganiza, recupera. Quem conhece a história da independência da Índia ou do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos sabe como o princípio de não responder ao mal com o mal pode ser revolucionário —pode desfazer estruturas que toneladas de bombas seriam incapazes de demolir.
Quando era mais jovem, não conseguia compreender a mensagem cristã. Acreditava que o cristianismo celebrava a apatia e cultivava a submissão. Esses preceitos me pareciam simplesmente execráveis. Eu odiava aquela mensagem e não conseguia entender seu apelo.
Só muito tempo depois pude perceber que, onde achava que havia celebração da apatia, havia na verdade um compromisso moral inabalável, uma firmeza de caráter a toda prova. Onde enxergava submissão, opressão e humilhação vergonhosa, havia na verdade grandeza, generosidade e altivez. Às vezes a pressa da juventude nos faz surdos e só com a paciência do tempo aprendemos a escutar.
Sempre me surpreendo como a mensagem cristã mais basilar, de amor ao próximo e perdão aos inimigos, pode ser soterrada e obliterada no discurso de alguns pregadores por cobranças prepotentes. O cristianismo do nosso dia a dia está muito mais preocupado em policiar e condenar condutas —sobretudo as sexuais —do que em compreender, amar e perdoar.
Isso, para mim, é o avesso da mensagem cristã. Tendemos a ser duros com quem nos ofende e complacentes com nossos erros. O amor aos inimigos e o perdão às ofensas exigem atuar em sentido contrário: evitar julgar o próximo e ser mais severo com nossos próprios equívocos.
Jesus não escondeu a essência de sua mensagem. Disse para perdoar não apenas sete vezes, como já não conseguia o impaciente Pedro, mas 70 vezes sete. Disse para fazermos o bem a quem nos odeia e que se alguém nos ferir a face ofereçamos a outra. Disse para não respondermos ao mal com o mal e nem a ofensa com ofensa. A mensagem dos evangelhos é muito clara: devemos perdoar, compreender e não responder o mal com o mal. É uma exigência moral elevada, difícil de sustentar, mas é um norte que deveríamos nos esforçar por perseguir.
O perdão é uma força moral pujante. Desorganiza e reorienta as relações viciadas. Muitas vezes estamos presos em ciclos de ódio em nossas relações pessoais —e na política também. Vivemos respondendo com cotoveladas às cotoveladas que recebemos, num ciclo longo de ofensa e resposta, cuja origem se perde no tempo. Cada lado acha que há uma ofensa primordial justificando as respostas, assim o ciclo se sustenta envolvendo os dois lados numa espiral crescente que faz mal a todos. Sempre que respondemos ao mal com o mal, aumentamos a quantidade de mal no mundo. O perdão interrompe unilateralmente esse ciclo. Não quer nada em troca, não pede reciprocidade, não exige reparação ou desculpas. É um ato de generosidade, uma grandeza d’alma que, pela força moral, desconcerta e reorganiza a relação entre as partes. O perdão cura. E o perdão transforma.
Quem já perdoou ou recebeu perdão, o perdão genuíno, sabe como ele desarranja, depois reorganiza, recupera. Quem conhece a história da independência da Índia ou do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos sabe como o princípio de não responder ao mal com o mal pode ser revolucionário —pode desfazer estruturas que toneladas de bombas seriam incapazes de demolir.
Quando era mais jovem, não conseguia compreender a mensagem cristã. Acreditava que o cristianismo celebrava a apatia e cultivava a submissão. Esses preceitos me pareciam simplesmente execráveis. Eu odiava aquela mensagem e não conseguia entender seu apelo.
Só muito tempo depois pude perceber que, onde achava que havia celebração da apatia, havia na verdade um compromisso moral inabalável, uma firmeza de caráter a toda prova. Onde enxergava submissão, opressão e humilhação vergonhosa, havia na verdade grandeza, generosidade e altivez. Às vezes a pressa da juventude nos faz surdos e só com a paciência do tempo aprendemos a escutar.
Epicuro na veia
"A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e, quando existe a morte, não existimos mais." A frase, de Epicuro, captura o que há de mais essencial sobre a morte. Seu corolário é que precisamos aproveitar a vida, buscando prazeres, cultivando amizades e tentando sempre agir de forma virtuosa. É preciso também evitar a dor e o sofrimento.
Nesse último item, o Brasil fracassa miseravelmente. No ranking de qualidade de morte da Universidade Duke, o Brasil ocupou, em 2022, a 79ª posição entre os 81 países estudados. O índice é bem ecumênico. O item que mais pesa é o controle da dor, mas também entram acesso a tratamentos, gentileza da equipe de saúde e até conforto espiritual para quem deseja. O Reino Unido, primeiro colocado na lista, obteve 93,1 pontos. O Brasil fez míseros 38,7, ficando à frente apenas do Líbano e do Paraguai.
Não quero, porém, soar mórbido. Depois de três anos de trevas no Ministério da Saúde, o governo Lula está lançando a Política Nacional de Cuidados Paliativos, um programa no qual pretende investir até R$ 851 milhões em 2024 para criar equipes multidisciplinares que disseminariam e dariam suporte técnico ao paliativismo em toda a rede assistencial do país.
Esse é um passo importante, mas a estrutura material não é a única frente de batalha. A questão cultural não é menos significativa. Ainda existe uma boa dose de preconceito desinformado contra o paliativismo. Os próprios pacientes que dele se beneficiariam não raro o veem com um pé atrás, identificando-o a uma espécie de desistência. Na verdade, existem várias fases e modalidades de cuidados paliativos, que idealmente começam com o diagnóstico de uma moléstia grave e vão até o último suspiro, que pode até se dar por outra causa que não a doença original. A meta é sempre poupar sofrimento e ampliar a qualidade de vida, em todas suas dimensões. É Epicuro na veia.
quarta-feira, 27 de dezembro de 2023
Acabar com a matança em Gaza
O número de palestinos mortos na Faixa de Gaza desde o início da guerra, em 7 de outubro, é agora de cerca de 20 mil, segundo dados divulgados quinta-feira pelo Ministério da Saúde de Gaza (que é controlado pelo Hamas).
Isto equivale a cerca de 1 por cento da população de Gaza. E esse número não inclui as numerosas pessoas desaparecidas e que se acredita estarem soterradas sob os escombros de edifícios destruídos.
Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, mais de dois terços das mortes são mulheres e crianças . Mesmo que estes números sejam imprecisos, Israel não apresentou quaisquer números contrários. O establishment da defesa de Israel estima que cerca de um terço das vítimas mortais são membros do Hamas. Isto representa danos sem precedentes para civis não envolvidos.
Um relatório investigativo do The New York Times do mês passado concluiu que as mortes de civis em Gaza durante a guerra atual estão a aumentar mais rapidamente do que durante as guerras americanas no Iraque, no Afeganistão e na Síria. E um novo relatório desse jornal dizia que durante as primeiras seis semanas da guerra, Israel lançou bombas de uma tonelada no sul de Gaza pelo menos 200 vezes, apesar de as Forças de Defesa de Israel e o governo israelita terem declarado o sul de Gaza como um local seguro para civis.
As Forças de Defesa de Israel (FDI) esforçaram-se por instar os habitantes de Gaza a deslocarem-se para sul. “Vão para o sul”, disse-lhes repetidamente o porta-voz da IDF, Daniel Hagari. Mas a reportagem do New York Times mostra que o sul não era realmente seguro.
As FDI – que estão agora também a realizar manobras terrestres no sul de Gaza, onde não houve evacuação em massa da população – têm a obrigação de fazer os ajustes necessários para reduzir os danos aos civis não envolvidos. Deve também ter em conta a situação humanitária em Gaza – a fome; as doenças; a escassez de água, alimentos e medicamentos; o facto de as pessoas não terem casas para onde regressar; e a infraestrutura destruída.
Deve ser feita uma distinção mais nítida entre atingir terroristas do Hamas e ferir civis não envolvidos, especialmente tendo em conta o facto de 129 reféns israelitas estarem detidos em Gaza.
Ao mesmo tempo, Israel deve avançar num acordo para a libertação dos reféns e estar preparado para pagar na moeda dos dias adicionais de cessar-fogo e da libertação dos prisioneiros palestinos.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, disseram repetidamente que a pressão militar sobre o Hamas faria com que a organização suavizasse as suas exigências e levaria ao regresso dos reféns, mas a realidade não correspondeu às suas expectativas.
Até agora, a ofensiva massiva em curso não produziu quaisquer resultados no que diz respeito aos reféns; isso apenas levou à suspensão das negociações sobre sua libertação. Trazer os reféns para casa é um dos objetivos supremos da guerra. O governo não tem mandato para abandonar os reféns, nem explícita nem implicitamente.
Isto equivale a cerca de 1 por cento da população de Gaza. E esse número não inclui as numerosas pessoas desaparecidas e que se acredita estarem soterradas sob os escombros de edifícios destruídos.
Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, mais de dois terços das mortes são mulheres e crianças . Mesmo que estes números sejam imprecisos, Israel não apresentou quaisquer números contrários. O establishment da defesa de Israel estima que cerca de um terço das vítimas mortais são membros do Hamas. Isto representa danos sem precedentes para civis não envolvidos.
Um relatório investigativo do The New York Times do mês passado concluiu que as mortes de civis em Gaza durante a guerra atual estão a aumentar mais rapidamente do que durante as guerras americanas no Iraque, no Afeganistão e na Síria. E um novo relatório desse jornal dizia que durante as primeiras seis semanas da guerra, Israel lançou bombas de uma tonelada no sul de Gaza pelo menos 200 vezes, apesar de as Forças de Defesa de Israel e o governo israelita terem declarado o sul de Gaza como um local seguro para civis.
As Forças de Defesa de Israel (FDI) esforçaram-se por instar os habitantes de Gaza a deslocarem-se para sul. “Vão para o sul”, disse-lhes repetidamente o porta-voz da IDF, Daniel Hagari. Mas a reportagem do New York Times mostra que o sul não era realmente seguro.
As FDI – que estão agora também a realizar manobras terrestres no sul de Gaza, onde não houve evacuação em massa da população – têm a obrigação de fazer os ajustes necessários para reduzir os danos aos civis não envolvidos. Deve também ter em conta a situação humanitária em Gaza – a fome; as doenças; a escassez de água, alimentos e medicamentos; o facto de as pessoas não terem casas para onde regressar; e a infraestrutura destruída.
Deve ser feita uma distinção mais nítida entre atingir terroristas do Hamas e ferir civis não envolvidos, especialmente tendo em conta o facto de 129 reféns israelitas estarem detidos em Gaza.
Ao mesmo tempo, Israel deve avançar num acordo para a libertação dos reféns e estar preparado para pagar na moeda dos dias adicionais de cessar-fogo e da libertação dos prisioneiros palestinos.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, disseram repetidamente que a pressão militar sobre o Hamas faria com que a organização suavizasse as suas exigências e levaria ao regresso dos reféns, mas a realidade não correspondeu às suas expectativas.
Até agora, a ofensiva massiva em curso não produziu quaisquer resultados no que diz respeito aos reféns; isso apenas levou à suspensão das negociações sobre sua libertação. Trazer os reféns para casa é um dos objetivos supremos da guerra. O governo não tem mandato para abandonar os reféns, nem explícita nem implicitamente.
domingo, 24 de dezembro de 2023
'Feliz Natal'
O filme “Feliz Natal” (Joyeux Noel), de Christian Carion, baseado em fatos reais, traz-nos a história do Natal no front de 1914 da Primeira Guerra Mundial, onde soldados da Alemanha, Escócia e França se confraternizaram, espontaneamente, em histórico episódio inédito.
A Primeira Guerra Mundial, a guerra das trincheiras, foi um dos mais terríveis episódios da história humana, em guerra onde morreram mais de 10 milhões de soldados, mais 30 milhões de Gripe Espanhola, no desolamento que se seguiu. Ao longo da guerra, foram construídas mais de 50 mil km de trincheiras. Em Verdun, onde se visitar leva à lágrimas de sangue sobre o sangue derramado na terra do sangue, morreram mais de 1 milhão soldados ao longo de um ano, em uma das piores batalhas já vistas pela humanidade. Padecemos, pobres de carne de que fomos feitos. Mortos sobre mortos, farpas sobre farpas, no devaneio da ilucidez.
No filme, um tenor da Ópera de Berlim vai ao front para entoar para os seus soldados, no que se contrapõe musicalmente a um Padre também tenor, escocês, no que se levantam, seguidos por outros soldados. Na fronteira do combate triplo da ignomínia, alemães, franceses e escoceses, se confraternizando, dialogando, experimentando comidas típicas, e disputando um improvisado campeonato de futebol. Como disse Eric Hartmann, piloto de guerra mais condecorado na Segunda Guerra pela Alemanha, pacifista na sequência do ocorrido, “a guerra é o lugar onde os jovens, sem se conhecer e sem se odiar, se matam, pela decisão dos mais velhos, que se conhecem e se odeiam, sem se matar”. No final, as tropas foram punidas, pelo exemplo que deram de bondade, em prol de suas “nacionalidades”.
Que o Natal reluza sobre nós e nossos lares, na bondade extrema que acometeu a esses soldados, destinados à luta, mas humanos em sua humanidade, como no espírito possível de todos nós.
A fome em Gaza: um forno de barro, meio pão por dia, comida fora do prazo
A crise de fome na Faixa de Gaza tornou-se visível nas imagens de crianças com tachos ou recipientes em filas esperando conseguir uma refeição quente de um centro de ajuda – é uma crise sem precedentes em qualquer outra guerra entre Israel e o Hamas, sublinha o diário israelita Haaretz.
“Consigo um pão [árabe] ou meio durante o dia”, dizia num vídeo Muhammad al-Khaldi, uma criança que está com a família no Sul, depois da ordem de evacuação do Norte dada pelas forças israelitas. “Digo à minha mãe que tenho fome e ela diz-me que não há comida”, cita o Haaretz. “É assim que lidamos com isto, dia após dia.”
Uma mulher que vivia na Cidade de Gaza e agora está em Rafah contou ao Haaretz que tem dado aos filhos comida fora do prazo. “Podem ficar com diarreia, mas ao menos têm qualquer coisa para comer.”
O Programa Alimentar Mundial diz que entraram no território apenas 10% dos bens alimentares necessários para os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza; a Human Rights Watch acusou Israel de estar a usar a fome como arma de guerra, “bloqueando deliberadamente a entrega de água, comida e combustível, impedindo intencionalmente a assistência humanitária, arrasando aparentemente zonas de agricultura, e privando a população civis de objectos indispensáveis à sua sobrevivência”.
Muitas pessoas têm cozinhado sopas com o que quer que consigam encontrar: há um fenómeno crescente de recolher quaisquer ervas ou plantas que encontrem em zonas que não tenham sido bombardeadas.
Há alguns produtos alimentares à venda mas a maioria das pessoas não conseguem pagar os preços que aumentaram cerca de dez vezes.
Um jornalista palestiniano, Motaz Azaiza, comentava já há semanas na rede social X (antigo Twitter) que em Gaza era mais fácil morrer num ataque do que comprar um quilo de sal. A videógrafa e jornalista Bisan Owda mostrava no Instagram uma imagem de uma laranja com bolor. “Foi o meu pequeno-almoço. Sei que não é bom para a saúde, mas qual é o valor da saúde face a tudo o que enfrentamos?”
“Recuámos várias décadas, fizemos um forno de barro, acendemos o fogo e cozemos o que tínhamos”, contou ao Haaretz Ahmad, que saiu da sua casa na Cidade de Gaza e está actualmente em Khan Younis.
Uma minoria com sorte consegue feijão ou lentilhas, com mais sorte ainda algumas malaguetas (em Gaza o picante tem um lugar especial, o que não acontece na Cisjordânia).
Segundo um relatório sobre o grau de fome em Gaza da iniciativa IPC, 90% das pessoas em Gaza estão a enfrentar fome em “níveis de crise”, passando com frequência um dia sem comer. E 40% destas pessoas estão mesmo em situação de emergência – um grau em que há subnutrição aguda e mortalidade em excesso – e mais de 15% em situação de catástrofe – um grau em que há níveis extremos de subnutrição e mortalidade em excesso. Isto quer dizer que é necessário um aumento urgente da ajuda alimentar a chegar ao território, sob pena de os números aumentarem ainda.
“Nunca vi nada na escala do que está a acontecer em Gaza”, disse Arif Husain, do Programa Alimentar Mundial., citado pela Associated Press. “As pessoas estão muito, muito perto de grandes vagas de doenças porque os seus sistemas imunitários estão muito enfraquecidos por não terem alimento suficiente”, disse.
Se os alimentos são um problema, a água também. Muita da água consumida não está a ser dessalinizada nem tratada, o que traz um risco especial para as crianças, alerta a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. A falta de água já era uma realidade antes do ataque do Hamas de 7 de Outubro, mas agudizou-se com as restrições às entradas impostas por Israel após o ataque, tal como o fornecimento de energia eléctrica, que passou de pouco a inexistente, e outras restrições existentes já desde que o Hamas tomou o poder no território em 2007.
“O acesso a água é uma questão de vida ou de morte”, disse a directora executiva da Unicef, Catherine Russell, e em Gaza as pessoas estão a ter de beber água com alto teor de sal ou poluída – um factor “dramático” para as crianças, que são mais vulneráveis a doenças devidas à água imprópria para consumo.
Alguma água potável estava a chegar ao território desde terça-feira, quando três centrais de dessalinização construídas pelos Emirados Árabes Unidos do lado egípcio da fronteira em Rafah começaram a funcionar.
A água chega para as necessidades diárias de 300 mil pessoas, longe de suficiente para o mais de um milhão de pessoas deslocadas no Sul, e continua a ter o problema do transporte, mas já permitia a algumas pessoas ter água potável. “Costumávamos trazer água do mar”, contou à Reuters Abu Sleyman, que ao beber a água comentou que esta “sabe a açúcar”, por não ter sal.
“Consigo um pão [árabe] ou meio durante o dia”, dizia num vídeo Muhammad al-Khaldi, uma criança que está com a família no Sul, depois da ordem de evacuação do Norte dada pelas forças israelitas. “Digo à minha mãe que tenho fome e ela diz-me que não há comida”, cita o Haaretz. “É assim que lidamos com isto, dia após dia.”
Uma mulher que vivia na Cidade de Gaza e agora está em Rafah contou ao Haaretz que tem dado aos filhos comida fora do prazo. “Podem ficar com diarreia, mas ao menos têm qualquer coisa para comer.”
O Programa Alimentar Mundial diz que entraram no território apenas 10% dos bens alimentares necessários para os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza; a Human Rights Watch acusou Israel de estar a usar a fome como arma de guerra, “bloqueando deliberadamente a entrega de água, comida e combustível, impedindo intencionalmente a assistência humanitária, arrasando aparentemente zonas de agricultura, e privando a população civis de objectos indispensáveis à sua sobrevivência”.
Muitas pessoas têm cozinhado sopas com o que quer que consigam encontrar: há um fenómeno crescente de recolher quaisquer ervas ou plantas que encontrem em zonas que não tenham sido bombardeadas.
Há alguns produtos alimentares à venda mas a maioria das pessoas não conseguem pagar os preços que aumentaram cerca de dez vezes.
Um jornalista palestiniano, Motaz Azaiza, comentava já há semanas na rede social X (antigo Twitter) que em Gaza era mais fácil morrer num ataque do que comprar um quilo de sal. A videógrafa e jornalista Bisan Owda mostrava no Instagram uma imagem de uma laranja com bolor. “Foi o meu pequeno-almoço. Sei que não é bom para a saúde, mas qual é o valor da saúde face a tudo o que enfrentamos?”
“Recuámos várias décadas, fizemos um forno de barro, acendemos o fogo e cozemos o que tínhamos”, contou ao Haaretz Ahmad, que saiu da sua casa na Cidade de Gaza e está actualmente em Khan Younis.
Uma minoria com sorte consegue feijão ou lentilhas, com mais sorte ainda algumas malaguetas (em Gaza o picante tem um lugar especial, o que não acontece na Cisjordânia).
Segundo um relatório sobre o grau de fome em Gaza da iniciativa IPC, 90% das pessoas em Gaza estão a enfrentar fome em “níveis de crise”, passando com frequência um dia sem comer. E 40% destas pessoas estão mesmo em situação de emergência – um grau em que há subnutrição aguda e mortalidade em excesso – e mais de 15% em situação de catástrofe – um grau em que há níveis extremos de subnutrição e mortalidade em excesso. Isto quer dizer que é necessário um aumento urgente da ajuda alimentar a chegar ao território, sob pena de os números aumentarem ainda.
“Nunca vi nada na escala do que está a acontecer em Gaza”, disse Arif Husain, do Programa Alimentar Mundial., citado pela Associated Press. “As pessoas estão muito, muito perto de grandes vagas de doenças porque os seus sistemas imunitários estão muito enfraquecidos por não terem alimento suficiente”, disse.
Se os alimentos são um problema, a água também. Muita da água consumida não está a ser dessalinizada nem tratada, o que traz um risco especial para as crianças, alerta a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. A falta de água já era uma realidade antes do ataque do Hamas de 7 de Outubro, mas agudizou-se com as restrições às entradas impostas por Israel após o ataque, tal como o fornecimento de energia eléctrica, que passou de pouco a inexistente, e outras restrições existentes já desde que o Hamas tomou o poder no território em 2007.
“O acesso a água é uma questão de vida ou de morte”, disse a directora executiva da Unicef, Catherine Russell, e em Gaza as pessoas estão a ter de beber água com alto teor de sal ou poluída – um factor “dramático” para as crianças, que são mais vulneráveis a doenças devidas à água imprópria para consumo.
Alguma água potável estava a chegar ao território desde terça-feira, quando três centrais de dessalinização construídas pelos Emirados Árabes Unidos do lado egípcio da fronteira em Rafah começaram a funcionar.
A água chega para as necessidades diárias de 300 mil pessoas, longe de suficiente para o mais de um milhão de pessoas deslocadas no Sul, e continua a ter o problema do transporte, mas já permitia a algumas pessoas ter água potável. “Costumávamos trazer água do mar”, contou à Reuters Abu Sleyman, que ao beber a água comentou que esta “sabe a açúcar”, por não ter sal.
O que fizeram com o Natal?
O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.
As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.
Carlos Drummond de Andrade
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.
As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.
Carlos Drummond de Andrade
O que o Jesus judeu diria sobre a guerra em Israel hoje?
Todo Natal o jornal costuma me pedir para escrever algo sobre o que realmente se sabe sobre a figura emblemática do Jesus judeu, que abriu o caminho ao cristianismo. Isso existiu? Onde nasceu? Em Belém ou Nazaré? É verdade que ele tinha irmãos e irmãs? Ele era casado com Maria Madalena ou não ? É histórico que ele tenha sido crucificado? Os judeus ou os romanos o condenaram? É verdade que ele acabou ressuscitando? E se não tivesse existido?
Este ano, ao escrever esta coluna sobre um novo Natal, que para mim é o 91º da minha vida, ao pensar no que escreveria, não pude esquecer que vamos celebrá-lo no meio do guerra devastadora em Israel, a poucos passos de Belém, onde, segundo a tradição, Jesus nasceu. E a dois passos do Egito, onde, também segundo a tradição, os pais de Jesus, Maria e José tiveram que fugir porque o então rei Herodes queria matar o novo Messias recém-nascido. E por isso ordenou o assassinato de todas as crianças até os quatro anos de idade.
O que me ocorre ao escrever este ano é que esta guerra, com todas as suas interrogações, infinitas interpretações, na busca de quem é mais culpado do que quem, está mais distante do que pregava aquele curioso pregador judeu que revolucionou a história. É difícil entender o Cristianismo sem o Judaísmo. E é difícil entender o que aquele judeu que desafiou o poder de seu tempo, que era a favor da vida e não da morte, pensaria de uma guerra com tanto sangue escorrendo nos chamados “lugares sagrados”.
Num Natal com tantas mortes inocentes de ambos os lados , os cristãos devem ser lembrados que se estas festas evocam alegria e ternura, porque se trata de nascimento e não de morte, entre tantas discussões políticas ou pseudopolíticas, não é possível esquecer qual foi o manifesto de Jesus, as chamadas bem-aventuranças:
“Bem-aventurados os que trabalham pela paz porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados vocês serão quando as pessoas os insultarem, perseguirem e disserem todo tipo de calúnia contra vocês. Bem-aventurados os perseguidos por serem justos.”
Difícil? Sim, eu diria impossível. E, no entanto, não haveria guerras, nem genocídios, nem holocaustos, nem massacres de mulheres e crianças inocentes sem acreditar que a paz é melhor do que a violência e a verdade do que as mentiras.
Nosso mundo continuará a ser um inferno de sangue e dor, de mentiras e injustiças, de guerras malucas geradas nas trevas da ganância e da sede de poder, nas quais os inocentes sempre acabam sendo sacrificados. O fácil é justificá-los. O difícil é gritar, juntos, crentes ou não, que não importam os adjetivos dados às guerras , pois o que nos faz felizes é a vida e não a morte. Ou o que os jovens quixotes das revoluções escreveram nas paredes: “Faça amor, não faça guerra”.
Hoje empobrecemos a língua ao falar de guerras justas ou injustas, de guerras políticas ou religiosas. Como disse um amigo meu: “Vamos parar com as bobagens: guerra é guerra e isso basta”.
Talvez porque esteja convencido, pela experiência de muitos anos vividos, que no fundo do poço escuro de cada um de nós existe uma luz de esperança, que todos preferimos a paz à guerra, a amizade ao ódio, as lágrimas de alegria às de sangue. Atrevo-me a dizer ao meu punhado de leitores e amigos: Feliz Natal de paz!
Nada mais? Sim, nada mais. Ou parece pouco para você?
Este ano, ao escrever esta coluna sobre um novo Natal, que para mim é o 91º da minha vida, ao pensar no que escreveria, não pude esquecer que vamos celebrá-lo no meio do guerra devastadora em Israel, a poucos passos de Belém, onde, segundo a tradição, Jesus nasceu. E a dois passos do Egito, onde, também segundo a tradição, os pais de Jesus, Maria e José tiveram que fugir porque o então rei Herodes queria matar o novo Messias recém-nascido. E por isso ordenou o assassinato de todas as crianças até os quatro anos de idade.
O que me ocorre ao escrever este ano é que esta guerra, com todas as suas interrogações, infinitas interpretações, na busca de quem é mais culpado do que quem, está mais distante do que pregava aquele curioso pregador judeu que revolucionou a história. É difícil entender o Cristianismo sem o Judaísmo. E é difícil entender o que aquele judeu que desafiou o poder de seu tempo, que era a favor da vida e não da morte, pensaria de uma guerra com tanto sangue escorrendo nos chamados “lugares sagrados”.
Num Natal com tantas mortes inocentes de ambos os lados , os cristãos devem ser lembrados que se estas festas evocam alegria e ternura, porque se trata de nascimento e não de morte, entre tantas discussões políticas ou pseudopolíticas, não é possível esquecer qual foi o manifesto de Jesus, as chamadas bem-aventuranças:
“Bem-aventurados os que trabalham pela paz porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados vocês serão quando as pessoas os insultarem, perseguirem e disserem todo tipo de calúnia contra vocês. Bem-aventurados os perseguidos por serem justos.”
Difícil? Sim, eu diria impossível. E, no entanto, não haveria guerras, nem genocídios, nem holocaustos, nem massacres de mulheres e crianças inocentes sem acreditar que a paz é melhor do que a violência e a verdade do que as mentiras.
Nosso mundo continuará a ser um inferno de sangue e dor, de mentiras e injustiças, de guerras malucas geradas nas trevas da ganância e da sede de poder, nas quais os inocentes sempre acabam sendo sacrificados. O fácil é justificá-los. O difícil é gritar, juntos, crentes ou não, que não importam os adjetivos dados às guerras , pois o que nos faz felizes é a vida e não a morte. Ou o que os jovens quixotes das revoluções escreveram nas paredes: “Faça amor, não faça guerra”.
Hoje empobrecemos a língua ao falar de guerras justas ou injustas, de guerras políticas ou religiosas. Como disse um amigo meu: “Vamos parar com as bobagens: guerra é guerra e isso basta”.
Talvez porque esteja convencido, pela experiência de muitos anos vividos, que no fundo do poço escuro de cada um de nós existe uma luz de esperança, que todos preferimos a paz à guerra, a amizade ao ódio, as lágrimas de alegria às de sangue. Atrevo-me a dizer ao meu punhado de leitores e amigos: Feliz Natal de paz!
Nada mais? Sim, nada mais. Ou parece pouco para você?
Juan Arias
Neste Natal, os sinos não tocam em Belém onde nasceu Jesus
Este ano, o Natal não será celebrado em Belém, cidade onde a tradição cristã acredita que nasceu Jesus. É também a terra natal do rei Davi, e o local onde ele foi coroado rei de Israel. Atualmente, Israel controla as entradas e saídas de Belém.
Encravada na Cisjordânia, território palestino, Belém fica a pouca distância da Faixa de Gaza, onde vivem 2,3 milhões de palestinos, ou melhor: viviam até 7 de outubro último, quando o grupo Hamas, que governa a Faixa, invadiu Israel.
O Hamas matou 1.200 pessoas e sequestrou cerca de 220. Para vingar-se, Israel invadiu a Faixa de Gaza e matou pouco mais de 20 mil palestinos até agora. Todos os dias, Israel promete só parar com a guerra depois que destruir o Hamas.
Enquanto não consegue, bombardeia o enclave com toda sorte de bombas pesadas e sem direção, mísseis e tiros de tanque. É o Exército mais poderoso do Oriente Médio, armado pelos Estados Unidos contra uma população desarmada.
Uma população que não tem para onde fugir porque nem Israel e os países árabes lhe oferecem abrigo. Orientada por Israel, parte dela abandonou o Norte da Faixa para escapar dos bombardeios que reduziram Gaza a escombros.
Então, Israel passou a atacar o Sul sob pretexto de que para ali também escaparam os líderes do Hamas. Mulheres e crianças somam 70% dos mortos e feridos na Faixa de Gaza, hoje o lugar mais perigoso do mundo para quem tenta sobreviver.
Dizer que “somos todos culpados” é a mesma coisa que dizer que ninguém é. Israel é o principal culpado por não existir um Estado Palestino. Só por isso, o Hamas venceu as eleições e governa a Faixa de Gaza – ou melhor: governava.
Se o Hamas, um dia, desaparecer, outro grupo surgirá para defender as mesmas ideias. Israel, em 2006, imaginou ter acabado com o Hezbollah, uma organização fundamentalista islâmica xiita sustentada pelo Irã.
O Hezbollah está mais forte, como o Hamas ou seu substituto também ficarão. Ideias com aderência social não morrem. Pesquisas aplicadas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia atestam que o apoio ao Hamas só fez crescer desde outubro.
Dizer “não em meu nome” é a mesma coisa que dizer a Israel que faça o que achar que deve, “mas eu lavo as minhas mãos”. Por mais que lave, elas continuarão sujas. Nada somos até tomarmos uma decisão. À falta de uma, somos cúmplices.
Feliz Natal para os que possam celebrá-lo com suas famílias e amigos em locais acolhedores. Não é o caso de Belém, onde os festejos estão suspensos. Ali, fora orações em voz baixa, poder-se-ia recitar os versos do poeta irlandês W.B. Yeats:
Uma população que não tem para onde fugir porque nem Israel e os países árabes lhe oferecem abrigo. Orientada por Israel, parte dela abandonou o Norte da Faixa para escapar dos bombardeios que reduziram Gaza a escombros.
Então, Israel passou a atacar o Sul sob pretexto de que para ali também escaparam os líderes do Hamas. Mulheres e crianças somam 70% dos mortos e feridos na Faixa de Gaza, hoje o lugar mais perigoso do mundo para quem tenta sobreviver.
Dizer que “somos todos culpados” é a mesma coisa que dizer que ninguém é. Israel é o principal culpado por não existir um Estado Palestino. Só por isso, o Hamas venceu as eleições e governa a Faixa de Gaza – ou melhor: governava.
Se o Hamas, um dia, desaparecer, outro grupo surgirá para defender as mesmas ideias. Israel, em 2006, imaginou ter acabado com o Hezbollah, uma organização fundamentalista islâmica xiita sustentada pelo Irã.
O Hezbollah está mais forte, como o Hamas ou seu substituto também ficarão. Ideias com aderência social não morrem. Pesquisas aplicadas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia atestam que o apoio ao Hamas só fez crescer desde outubro.
Dizer “não em meu nome” é a mesma coisa que dizer a Israel que faça o que achar que deve, “mas eu lavo as minhas mãos”. Por mais que lave, elas continuarão sujas. Nada somos até tomarmos uma decisão. À falta de uma, somos cúmplices.
Feliz Natal para os que possam celebrá-lo com suas famílias e amigos em locais acolhedores. Não é o caso de Belém, onde os festejos estão suspensos. Ali, fora orações em voz baixa, poder-se-ia recitar os versos do poeta irlandês W.B. Yeats:
“Espalhei os meus sonhos sob os teus pés; pise com cuidado, porque você pisa nos meus sonhos.”
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
O futuro
Certa feita, Astrud Gilberto, João Donato e eu vínhamos de um estúdio de gravação, em Nova Iorque, quando passando por uma rua vimos uma cigana num sobrado e resolvemos consultá-la. Donato foi o primeiro a sentar-se frente a ela que, tomando-lhe a mão, disse: "Vou ler o seu passado." E Donato, com aquele ar perdido e olhar esgazeado, retrucou: "Não, gipsy, o passado eu já conheço. Fale do futuro." Desconcertada, a cigana voltou-se para nós e confidenciou: "Ele é maluco..." Claro. Só a loucura poderia ser tão lúcida. De uma tacada, Donato descartara o passado. Quantos, para exorcizá-lo, necessitam recorrer à psicanálise ou mesmo às autobiografias...
Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."
Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.
Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.
É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.
Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.
Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."
Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.
Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.
É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.
Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.
Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Carlos Lyra
Morte na obra
Junto ao tapume da construção, formara-se um grupo de populares, falando pouco, em voz baixa. A obra parara. Mas, das imediações, vinha o mesmo ruído de serra e de elevador transportando material, em outras obras que nada tinham com o caso.
O caso era de Sebastião Raimundo (como informou em três linhas, na manhã seguinte, o jornal), que trabalhava no sétimo andar e, descuidando-se, caíra ao solo. Aí viveu ainda o tempo necessário para que o telefone mais próximo chamasse a Assistência, e a ambulância chegasse, verificando o óbito. Como não havia mais nada a fazer, deixou-se o corpo na mesma posição à espera de outro veículo, que o transportasse ao necrotério. Algumas horas depois, era removido.
No intervalo, curiosos procuravam ver, e não viam. O rapaz tombara dentro da área da construção, e a portinhola do tapume estava cerrada. Apenas, pelas frinchas, podia distinguir-se um trecho de cadáver, e logo depois nem isso, pois ele foi recoberto com um lençol tirado ao barracão dos trabalhadores, junto à obra. Acenderam-se as velas de costume.
Os comentários na calçada eram vagos, nem havia muita substância para eles. O acontecimento fora dos mais simples: falta de cinto de segurança. Somente, como entre o morto e os vivos se levantava um muro de madeira, o primeiro adquiriu um halo de mistério, que a exposição crua não sustentaria. E os olhos queriam ver, porque essa é a função dos olhos, sem embargo da pena que causava a morte do rapaz, ou mesmo servindo à pena, que costuma nutrir-se de visões.
Alguns se quedavam sempre, ora colando o rosto às tábuas, ora contemplando a ossatura do prédio e imaginando as circunstâncias da queda. Outros, ao fim de minutos, mostravam-se menos pacientes, e seguiam a seu destino, mas havia os que voltavam, pensando melhor. Eram velhos cobradores de associações de caridade, porteiros, lavadores de carro, entregadores de pão, crianças. E, ainda, pequeno-burgueses que aguardavam lotação. Moças de maiô, que desciam para o mar, detinham-se um instante, indagavam, iam entristecer, mas os companheiros as chamavam, insofridos, depois de verificarem por sua vez que não havia nada a observar. Nada: a não ser o tapume pintado, com a tabuleta da firma, e uma notícia de morte, que se perdia entre as solicitações da manhã.
Transeuntes cismam longamente diante de dois automóveis amassados na rua, com traços de sangue, ou sem isso; a ideia de desastre os fascina, e a de morte lhes desperta sentimentos que dormitavam sob a necessidade de viver; diante dos ferros retorcidos, registram a proximidade de perigos que os roçaram com a asa, mas que, caprichosamente, foram escolher outras vítimas. Aqui, porém, não há objeto visível. Compete à imaginação trabalhar mais, para criar a simpatia e o terror, que interrompem o curso monótono das coisas, e nos restituem a nós mesmos, tornando-nos conscientes e solidários com o mundo.
É preciso que alguém desabe do alto, para que operem essas forças profundas. Não conhecíamos a pessoa, e amanhã já a teremos esquecido, mas nesse instante em que tomamos conhecimento de seu risco no ar, também morremos um pouco e nos vemos estatelados, à espera do lençol e da vela acesa. À noite, chegando em casa, contamos: Imagina, vi um homem morto na rua. E assim, espraiando-se em círculos por uma porção de casas, à hora do balanço do dia, essa morte rigorosamente anônima se presta, por isso mesmo, a criar em nós a impressão pessoal de morte, em que se condensam outras experiências mais diretas, antigas e abandonadas; em que entra o pressentimento de experiências futuras, para as quais instintivamente nos preparamos. Tudo isso demora um minuto, ou pouco mais, de silêncio, mas conta.
A obra não podia ficar suspensa indefinidamente, e logo recomeçou, arrastada. Os trabalhadores viam lá embaixo a superfície alva, formando pequenas elevações. Tocou a sineta para o almoço. Foram descendo e passando a pequena distância do corpo, olhando-o de banda. Pegaram das marmitas e comeram, calados.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"
O caso era de Sebastião Raimundo (como informou em três linhas, na manhã seguinte, o jornal), que trabalhava no sétimo andar e, descuidando-se, caíra ao solo. Aí viveu ainda o tempo necessário para que o telefone mais próximo chamasse a Assistência, e a ambulância chegasse, verificando o óbito. Como não havia mais nada a fazer, deixou-se o corpo na mesma posição à espera de outro veículo, que o transportasse ao necrotério. Algumas horas depois, era removido.
No intervalo, curiosos procuravam ver, e não viam. O rapaz tombara dentro da área da construção, e a portinhola do tapume estava cerrada. Apenas, pelas frinchas, podia distinguir-se um trecho de cadáver, e logo depois nem isso, pois ele foi recoberto com um lençol tirado ao barracão dos trabalhadores, junto à obra. Acenderam-se as velas de costume.
Os comentários na calçada eram vagos, nem havia muita substância para eles. O acontecimento fora dos mais simples: falta de cinto de segurança. Somente, como entre o morto e os vivos se levantava um muro de madeira, o primeiro adquiriu um halo de mistério, que a exposição crua não sustentaria. E os olhos queriam ver, porque essa é a função dos olhos, sem embargo da pena que causava a morte do rapaz, ou mesmo servindo à pena, que costuma nutrir-se de visões.
Alguns se quedavam sempre, ora colando o rosto às tábuas, ora contemplando a ossatura do prédio e imaginando as circunstâncias da queda. Outros, ao fim de minutos, mostravam-se menos pacientes, e seguiam a seu destino, mas havia os que voltavam, pensando melhor. Eram velhos cobradores de associações de caridade, porteiros, lavadores de carro, entregadores de pão, crianças. E, ainda, pequeno-burgueses que aguardavam lotação. Moças de maiô, que desciam para o mar, detinham-se um instante, indagavam, iam entristecer, mas os companheiros as chamavam, insofridos, depois de verificarem por sua vez que não havia nada a observar. Nada: a não ser o tapume pintado, com a tabuleta da firma, e uma notícia de morte, que se perdia entre as solicitações da manhã.
Transeuntes cismam longamente diante de dois automóveis amassados na rua, com traços de sangue, ou sem isso; a ideia de desastre os fascina, e a de morte lhes desperta sentimentos que dormitavam sob a necessidade de viver; diante dos ferros retorcidos, registram a proximidade de perigos que os roçaram com a asa, mas que, caprichosamente, foram escolher outras vítimas. Aqui, porém, não há objeto visível. Compete à imaginação trabalhar mais, para criar a simpatia e o terror, que interrompem o curso monótono das coisas, e nos restituem a nós mesmos, tornando-nos conscientes e solidários com o mundo.
É preciso que alguém desabe do alto, para que operem essas forças profundas. Não conhecíamos a pessoa, e amanhã já a teremos esquecido, mas nesse instante em que tomamos conhecimento de seu risco no ar, também morremos um pouco e nos vemos estatelados, à espera do lençol e da vela acesa. À noite, chegando em casa, contamos: Imagina, vi um homem morto na rua. E assim, espraiando-se em círculos por uma porção de casas, à hora do balanço do dia, essa morte rigorosamente anônima se presta, por isso mesmo, a criar em nós a impressão pessoal de morte, em que se condensam outras experiências mais diretas, antigas e abandonadas; em que entra o pressentimento de experiências futuras, para as quais instintivamente nos preparamos. Tudo isso demora um minuto, ou pouco mais, de silêncio, mas conta.
A obra não podia ficar suspensa indefinidamente, e logo recomeçou, arrastada. Os trabalhadores viam lá embaixo a superfície alva, formando pequenas elevações. Tocou a sineta para o almoço. Foram descendo e passando a pequena distância do corpo, olhando-o de banda. Pegaram das marmitas e comeram, calados.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"
Jamais discorde
Meu velho mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, está no Brasil (ele adora nosso Natal carnavalesco) e assistiu à sabatina dos ilustres Flávio Dino e Paulo Gonet.
Quando nos vimos, o famoso brasilianista foi logo dizendo como a sabatina era um ritual fora do lugar no Brasil — especialmente entre integrantes da elite política. Perguntei: “por quê?”. E o professor foi claro:
— Ora— observou sério, sorvendo meu uísque —, vocês são adestrados para jamais discordar ou dizer não. Exceto, claro, para os inferiores... Aliás, foi você mesmo quem me informou sobre o assunto quando contou que um de seus mais penosos aprendizados foi não revelar suas opiniões franca e abertamente, correndo o risco de desagradar ao superior, promovendo o dissídio, a crítica ou a negação de uma ordem social estrutural e inconscientemente escravocrata.
Nela, concordar combina com harmonizar, com entender, com “estar junto” e com obedecer, que é sua dimensão oculta mais importante. Conciliação, como você bem sabe, é um elemento básico na história social do Brasil. Evitar extremos porque, afinal, a virtude está no meio, conforme dizia Sérgio Buarque de Holanda, citando o poeta quinhentista português Francisco Sá de Miranda.
Ficar em cima do muro, esperar sentado, fechar o bico, morder a língua, saber-se inoportuno ou inferior é uma virtude nacional prezada e admirada. Com ela, ganham-se prestígio e poder porque, afinal de contas, a conciliação adia questões cruciais, deixando o problema para outra administração.
— Num mundo tão complicado — concluiu Moneygrand —, acho conciliar razoável. Afinal, é melhor harmonizar do que terrorismo e guerra...
Durante as dez horas de sabatina, meu antigo mentor e eu víamos poucos confrontos sobre temas básicos — como as convicções éticas, respondidas, aliás, com brilho por Flávio Dino, levando meu mestre a comentar que o ministro, afinal, havia entendido bem que somos responsáveis pelos papéis que desempenhamos, mas somos igualmente devedores morais dos encargos devidos a nossos cargos. Não entender isso é destruir a ordem, gerando o caos, como ocorreu no governo Bolsonaro.
No mais, ouvi o estrangeiro amigo chamar minha atenção para nossa dificuldade cultural de isolar a mesa e os sabatinados, muitas vezes interrompidos seja pelos serviçais que, como humildes papagaios de pirata, circulavam à volta deles, seja por colegas que, brasileiramente, falavam com o presidente do ritual, revelando que as normas variam de acordo com o nível de conhecimento e amizade.
Moneygrand repetia: veja como você tem razão. No Brasil, há enorme dificuldade de isolar pessoas como exige o ritual. Vossa índole relacional e hierárquica tende a impedir a separação, mesmo num ritual tão importante quanto essa sabatina que certamente — completou — dará a Lula da Silva um tribunal superior domesticado.
Discordei inutilmente porque não podia deixar de enxergar nossa dificuldade cultural de discordar e confrontar. Imediatamente, pensei no imenso problema de resolver legalmente as várias situações decorrentes da escravidão, ainda cravadas em nossas veias e corações.
Ao término da sabatina, estávamos sabatinados de cordialidade formal. Tínhamos testemunhado mais uma batalha entre “inimigos íntimos” — de uma elite de irmãos siameses. Poderosa e dura de roer como afirmou Moneygrand, terminando meu estoque de uísque...
Hoje, vivemos o alívio do pós-confronto de “donos do poder”, que, afinal de contas e graças ao bom Deus, concordam em discordar e domesticam as feras da mudança que, sabemos bem, jamais serão capazes de triunfar sobre o mau gosto de discordar.
Quando nos vimos, o famoso brasilianista foi logo dizendo como a sabatina era um ritual fora do lugar no Brasil — especialmente entre integrantes da elite política. Perguntei: “por quê?”. E o professor foi claro:
— Ora— observou sério, sorvendo meu uísque —, vocês são adestrados para jamais discordar ou dizer não. Exceto, claro, para os inferiores... Aliás, foi você mesmo quem me informou sobre o assunto quando contou que um de seus mais penosos aprendizados foi não revelar suas opiniões franca e abertamente, correndo o risco de desagradar ao superior, promovendo o dissídio, a crítica ou a negação de uma ordem social estrutural e inconscientemente escravocrata.
Nela, concordar combina com harmonizar, com entender, com “estar junto” e com obedecer, que é sua dimensão oculta mais importante. Conciliação, como você bem sabe, é um elemento básico na história social do Brasil. Evitar extremos porque, afinal, a virtude está no meio, conforme dizia Sérgio Buarque de Holanda, citando o poeta quinhentista português Francisco Sá de Miranda.
Ficar em cima do muro, esperar sentado, fechar o bico, morder a língua, saber-se inoportuno ou inferior é uma virtude nacional prezada e admirada. Com ela, ganham-se prestígio e poder porque, afinal de contas, a conciliação adia questões cruciais, deixando o problema para outra administração.
— Num mundo tão complicado — concluiu Moneygrand —, acho conciliar razoável. Afinal, é melhor harmonizar do que terrorismo e guerra...
Durante as dez horas de sabatina, meu antigo mentor e eu víamos poucos confrontos sobre temas básicos — como as convicções éticas, respondidas, aliás, com brilho por Flávio Dino, levando meu mestre a comentar que o ministro, afinal, havia entendido bem que somos responsáveis pelos papéis que desempenhamos, mas somos igualmente devedores morais dos encargos devidos a nossos cargos. Não entender isso é destruir a ordem, gerando o caos, como ocorreu no governo Bolsonaro.
No mais, ouvi o estrangeiro amigo chamar minha atenção para nossa dificuldade cultural de isolar a mesa e os sabatinados, muitas vezes interrompidos seja pelos serviçais que, como humildes papagaios de pirata, circulavam à volta deles, seja por colegas que, brasileiramente, falavam com o presidente do ritual, revelando que as normas variam de acordo com o nível de conhecimento e amizade.
Moneygrand repetia: veja como você tem razão. No Brasil, há enorme dificuldade de isolar pessoas como exige o ritual. Vossa índole relacional e hierárquica tende a impedir a separação, mesmo num ritual tão importante quanto essa sabatina que certamente — completou — dará a Lula da Silva um tribunal superior domesticado.
Discordei inutilmente porque não podia deixar de enxergar nossa dificuldade cultural de discordar e confrontar. Imediatamente, pensei no imenso problema de resolver legalmente as várias situações decorrentes da escravidão, ainda cravadas em nossas veias e corações.
Ao término da sabatina, estávamos sabatinados de cordialidade formal. Tínhamos testemunhado mais uma batalha entre “inimigos íntimos” — de uma elite de irmãos siameses. Poderosa e dura de roer como afirmou Moneygrand, terminando meu estoque de uísque...
Hoje, vivemos o alívio do pós-confronto de “donos do poder”, que, afinal de contas e graças ao bom Deus, concordam em discordar e domesticam as feras da mudança que, sabemos bem, jamais serão capazes de triunfar sobre o mau gosto de discordar.
'Passei com meus filhos por explosões e cadáveres em decomposição'
Saímos com muita pressa. Estávamos assando pão e percebemos que as casas à nossa frente estavam sendo bombardeadas, uma por uma. Eu sabia que em breve seria a nossa vez. Tínhamos arrumado algumas malas para o caso de isso acontecer, mas tudo estava tão apressado que esquecemos de levá-las. Nem fechamos a porta da frente.
Tínhamos esperado para partir porque não queríamos mudar meus pais idosos e levamos anos para economizar para construir nossa casa em al-Zeitoun, mas no final tivemos que ir. Meu filho, Omar, morreu lá em novembro de 2012, quando estilhaços atingiram nossa casa em outra guerra com Israel e eu não podia arriscar perder mais filhos.
Eu sabia que no sul não havia eletricidade, nem água e as pessoas tinham de fazer fila durante horas para usar uma casa de banho. Mas no final, pegando apenas uma garrafa de água e algumas sobras de pão, juntámo-nos a milhares de outros que faziam a perigosa viagem pela estrada de Salah al-Din em direção ao sul, onde Israel dizia ser seguro.
Muitos membros da minha família caminharam juntos – minha esposa Ahlam, nossos quatro filhos, de dois, oito, nove e 14 anos, meus pais, irmãos, irmãs, primos e seus filhos.
Caminhamos durante horas e sabíamos que eventualmente teríamos que passar por um posto de controle israelense que foi montado durante a guerra. Estávamos nervosos e meus filhos perguntavam: “O que o exército fará conosco?”
Paramos a cerca de 1 km do posto de controle e nos juntamos a uma enorme fila de pessoas que enchia toda a estrada. Passamos mais de quatro horas esperando lá e meu pai desmaiou três vezes.
Havia soldados israelenses nos observando de prédios bombardeados de um lado da estrada e mais soldados em um terreno baldio do outro lado.
À medida que nos aproximávamos do posto de controle, vimos mais soldados acima de nós, numa tenda numa colina. Achamos que eles administraram o posto de controle remotamente de lá, nos observando através de binóculos e usando alto-falantes para nos dizer o que fazer.
Havia dois contêineres abertos perto da tenda. Todos os homens tiveram que passar por um e as mulheres pelo outro, com câmeras constantemente apontadas para nós. Depois de passarmos, os soldados israelenses pediram para ver nossas identidades e fomos fotografados.
Vi cerca de 50 pessoas detidas, todos homens, incluindo dois dos meus vizinhos. Um jovem foi detido porque tinha perdido os seus documentos e não conseguia lembrar-se do seu número de identificação. Outro homem ao meu lado na fila foi chamado de terrorista por um soldado israelense, antes de também ser levado embora.
Eles foram instruídos a ficar apenas de cueca e sentar no chão. Posteriormente, alguns foram convidados a se vestir e ir embora, enquanto outros foram vendados.
Vi quatro detidos vendados, incluindo os meus vizinhos, levados para trás de uma colina de areia perto de um edifício demolido. Quando eles estavam fora de vista, ouvimos tiros. Não tenho ideia se eles foram baleados ou não.
Separadamente, outras pessoas que fizeram a mesma viagem que eu foram contatadas por um colega meu no Cairo. Um deles, Kamal Aljojo, disse que logo depois de passar pelo posto de controle, uma semana antes, viu cadáveres, mas não sabia como haviam morrido.
O meu colega também falou com um homem chamado Muhammed que passou pelo mesmo posto de controlo no dia 13 de Novembro. “Um soldado me pediu para tirar todas as minhas roupas, até mesmo a roupa de baixo”, disse Muhammed à BBC. Ele acrescentou: "Eu estava nu na frente de todos que passavam. Fiquei com vergonha. De repente, uma soldado apontou a arma para mim e riu antes de afastá-la rapidamente. Fiquei humilhado." Muhammed disse que teve que esperar nu por cerca de duas horas antes de poder sair.
Embora minha esposa, meus filhos, meus pais e eu tenhamos passado pelo posto de controle com segurança, dois de meus irmãos se atrasaram.
Enquanto esperávamos por eles, um soldado israelense gritou com um grupo de pessoas à nossa frente que tentava voltar em direção aos contêineres para ver como estavam seus parentes, que haviam sido detidos.
Ele usou um alto-falante para dizer-lhes que seguissem em frente e ficassem a pelo menos 300 metros de distância, então um soldado começou a atirar para o alto em sua direção para intimidá-los. Ouvimos muitos tiros enquanto estávamos na fila.
Todos choravam e minha mãe soluçava: "O que aconteceu com meus filhos? Eles atiraram neles?"
As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram à BBC que “indivíduos suspeitos de afiliação a organizações terroristas” foram detidos para inquéritos preliminares e, se permanecessem suspeitos, foram transferidos para Israel para interrogatórios adicionais. Outros foram “imediatamente libertados”, disse.
Ele disse que as roupas tiveram que ser removidas para verificar se havia coletes explosivos ou outras armas e que os detidos foram vestidos o mais rápido possível. Afirmou que não pretendia “minar a segurança e a dignidade dos detidos” e que as FDI “operam de acordo com o direito internacional”.
As IDF também disseram que "não disparam contra civis que se deslocam ao longo do corredor humanitário de norte a sul", mas quando jovens tentaram mover-se na direcção oposta, "foram recebidos com tiros para fins de dispersão, depois de terem sido disse por meio de um alto-falante para não avançar em direção à posição das tropas e continuou a fazê-lo".
Acrescentou que o som de tiros era comum e “o som de tiros por si só não constitui uma indicação de tiro de um local específico ou de um determinado tipo”.
Minha esposa e eu ficamos aliviados quando seguimos em frente e o posto de controle desapareceu de vista atrás de nós, mas não tínhamos ideia de que a parte mais difícil da viagem ainda estava por vir.
À medida que caminhávamos mais para sul, vi cerca de 10 corpos em diferentes locais à beira da estrada.
Outras partes espalhadas e apodrecidas do corpo estavam cobertas de moscas e pássaros bicando os restos mortais. Eles exalavam um dos cheiros mais desagradáveis que já experimentei.
Eu não suportava a ideia de meus filhos os verem, então gritei a plenos pulmões, dizendo-lhes para olharem para o céu e continuarem andando.
Eu vi um carro queimado com uma cabeça humana decepada dentro. As mãos do cadáver apodrecido e sem cabeça ainda seguravam o volante.
Havia também corpos de burros e cavalos mortos, alguns reduzidos a esqueletos, e enormes pilhas de lixo e comida estragada.
Então um tanque israelense apareceu numa estrada secundária, vindo em nossa direção a uma velocidade vertiginosa. Ficamos assustados e para fugir tivemos que atropelar cadáveres. Algumas pessoas na multidão tropeçaram nos corpos. O tanque mudou de rumo cerca de 20 metros antes de chegar à estrada principal.
De repente, próximo à estrada, um prédio foi bombardeado. A explosão foi assustadora e estilhaços voaram por toda parte.
Eu queria que o mundo nos engolisse.
Estávamos abalados e exaustos, mas seguimos em direção ao acampamento Nuseirat. Chegamos lá à noite e tivemos que dormir na calçada. Estava congelando.
Colocamos minha jaqueta em volta dos filhos do meio, enfiando as mãos nas mangas para tentar mantê-los aquecidos. Cobrimos nosso filho mais novo com minha camisa. Nunca senti tanto frio em toda a minha vida.
Quando a BBC perguntou sobre o tanque e os corpos, as IDF disseram que "durante o dia, os tanques se movem em rotas que se cruzam com a estrada Salah al-Din, mas não houve nenhum caso em que os tanques se moveram em direção a civis que se deslocavam de norte a sul da Faixa de Gaza no corredor humanitário".
As IDF disseram não ter conhecimento de nenhum caso de pilhas de cadáveres na estrada Salah al-Din, mas houve momentos em que os veículos de Gaza "abandonaram corpos durante a viagem, que as IDF posteriormente evacuaram".
Na manhã seguinte partimos cedo para Khan Younis, a segunda maior cidade de Gaza. Pagamos alguém para nos levar parte do caminho em uma carroça puxada por um burro. Depois, em Deir al-Balah, pegamos um ônibus que deveria transportar apenas 20 pessoas, mas embarcaram 30 pessoas. Alguns sentavam-se no telhado e outros agarravam-se às portas e janelas pelo lado de fora.
Em Khan Younis, tentámos encontrar um lugar seguro para ficar numa escola gerida pela ONU que tinha sido transformada num abrigo, mas estava cheia. Acabamos alugando um armazém embaixo de um prédio residencial e ficamos lá por uma semana.
Os meus pais, irmão e irmãs decidiram ficar em Khan Younis, mas depois do mercado local ter sido bombardeado, a minha mulher e eu decidimos levar os nossos filhos mais para sul, para Rafah, para ficarmos com a família dela. Eles conseguiram uma carona em um carro e eu me juntei a eles mais tarde de ônibus, mas estava tão cheio que tive que me segurar do lado de fora da porta.
Agora estamos alugando um pequeno anexo com telhado de lata e plástico. Não há nada que nos proteja da queda de estilhaços.
Tudo é caro e não conseguimos muitas das coisas que precisamos. Se quisermos água potável, temos que fazer fila durante três horas e não temos comida suficiente para três refeições por dia, por isso não almoçamos mais, apenas pequeno-almoço e jantar.
Meu filho comia um ovo todos os dias. Um ovo - você pode imaginar? Não posso nem dar isso a ele agora. Tudo o que quero é sair de Gaza e estar seguro com os meus filhos, mesmo que isso signifique viver numa tenda.
Tínhamos esperado para partir porque não queríamos mudar meus pais idosos e levamos anos para economizar para construir nossa casa em al-Zeitoun, mas no final tivemos que ir. Meu filho, Omar, morreu lá em novembro de 2012, quando estilhaços atingiram nossa casa em outra guerra com Israel e eu não podia arriscar perder mais filhos.
Eu sabia que no sul não havia eletricidade, nem água e as pessoas tinham de fazer fila durante horas para usar uma casa de banho. Mas no final, pegando apenas uma garrafa de água e algumas sobras de pão, juntámo-nos a milhares de outros que faziam a perigosa viagem pela estrada de Salah al-Din em direção ao sul, onde Israel dizia ser seguro.
Muitos membros da minha família caminharam juntos – minha esposa Ahlam, nossos quatro filhos, de dois, oito, nove e 14 anos, meus pais, irmãos, irmãs, primos e seus filhos.
Caminhamos durante horas e sabíamos que eventualmente teríamos que passar por um posto de controle israelense que foi montado durante a guerra. Estávamos nervosos e meus filhos perguntavam: “O que o exército fará conosco?”
Paramos a cerca de 1 km do posto de controle e nos juntamos a uma enorme fila de pessoas que enchia toda a estrada. Passamos mais de quatro horas esperando lá e meu pai desmaiou três vezes.
Havia soldados israelenses nos observando de prédios bombardeados de um lado da estrada e mais soldados em um terreno baldio do outro lado.
À medida que nos aproximávamos do posto de controle, vimos mais soldados acima de nós, numa tenda numa colina. Achamos que eles administraram o posto de controle remotamente de lá, nos observando através de binóculos e usando alto-falantes para nos dizer o que fazer.
Havia dois contêineres abertos perto da tenda. Todos os homens tiveram que passar por um e as mulheres pelo outro, com câmeras constantemente apontadas para nós. Depois de passarmos, os soldados israelenses pediram para ver nossas identidades e fomos fotografados.
Vi cerca de 50 pessoas detidas, todos homens, incluindo dois dos meus vizinhos. Um jovem foi detido porque tinha perdido os seus documentos e não conseguia lembrar-se do seu número de identificação. Outro homem ao meu lado na fila foi chamado de terrorista por um soldado israelense, antes de também ser levado embora.
Eles foram instruídos a ficar apenas de cueca e sentar no chão. Posteriormente, alguns foram convidados a se vestir e ir embora, enquanto outros foram vendados.
Vi quatro detidos vendados, incluindo os meus vizinhos, levados para trás de uma colina de areia perto de um edifício demolido. Quando eles estavam fora de vista, ouvimos tiros. Não tenho ideia se eles foram baleados ou não.
Separadamente, outras pessoas que fizeram a mesma viagem que eu foram contatadas por um colega meu no Cairo. Um deles, Kamal Aljojo, disse que logo depois de passar pelo posto de controle, uma semana antes, viu cadáveres, mas não sabia como haviam morrido.
O meu colega também falou com um homem chamado Muhammed que passou pelo mesmo posto de controlo no dia 13 de Novembro. “Um soldado me pediu para tirar todas as minhas roupas, até mesmo a roupa de baixo”, disse Muhammed à BBC. Ele acrescentou: "Eu estava nu na frente de todos que passavam. Fiquei com vergonha. De repente, uma soldado apontou a arma para mim e riu antes de afastá-la rapidamente. Fiquei humilhado." Muhammed disse que teve que esperar nu por cerca de duas horas antes de poder sair.
Embora minha esposa, meus filhos, meus pais e eu tenhamos passado pelo posto de controle com segurança, dois de meus irmãos se atrasaram.
Enquanto esperávamos por eles, um soldado israelense gritou com um grupo de pessoas à nossa frente que tentava voltar em direção aos contêineres para ver como estavam seus parentes, que haviam sido detidos.
Ele usou um alto-falante para dizer-lhes que seguissem em frente e ficassem a pelo menos 300 metros de distância, então um soldado começou a atirar para o alto em sua direção para intimidá-los. Ouvimos muitos tiros enquanto estávamos na fila.
Todos choravam e minha mãe soluçava: "O que aconteceu com meus filhos? Eles atiraram neles?"
As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram à BBC que “indivíduos suspeitos de afiliação a organizações terroristas” foram detidos para inquéritos preliminares e, se permanecessem suspeitos, foram transferidos para Israel para interrogatórios adicionais. Outros foram “imediatamente libertados”, disse.
Ele disse que as roupas tiveram que ser removidas para verificar se havia coletes explosivos ou outras armas e que os detidos foram vestidos o mais rápido possível. Afirmou que não pretendia “minar a segurança e a dignidade dos detidos” e que as FDI “operam de acordo com o direito internacional”.
As IDF também disseram que "não disparam contra civis que se deslocam ao longo do corredor humanitário de norte a sul", mas quando jovens tentaram mover-se na direcção oposta, "foram recebidos com tiros para fins de dispersão, depois de terem sido disse por meio de um alto-falante para não avançar em direção à posição das tropas e continuou a fazê-lo".
Acrescentou que o som de tiros era comum e “o som de tiros por si só não constitui uma indicação de tiro de um local específico ou de um determinado tipo”.
Minha esposa e eu ficamos aliviados quando seguimos em frente e o posto de controle desapareceu de vista atrás de nós, mas não tínhamos ideia de que a parte mais difícil da viagem ainda estava por vir.
À medida que caminhávamos mais para sul, vi cerca de 10 corpos em diferentes locais à beira da estrada.
Outras partes espalhadas e apodrecidas do corpo estavam cobertas de moscas e pássaros bicando os restos mortais. Eles exalavam um dos cheiros mais desagradáveis que já experimentei.
Eu não suportava a ideia de meus filhos os verem, então gritei a plenos pulmões, dizendo-lhes para olharem para o céu e continuarem andando.
Eu vi um carro queimado com uma cabeça humana decepada dentro. As mãos do cadáver apodrecido e sem cabeça ainda seguravam o volante.
Havia também corpos de burros e cavalos mortos, alguns reduzidos a esqueletos, e enormes pilhas de lixo e comida estragada.
Então um tanque israelense apareceu numa estrada secundária, vindo em nossa direção a uma velocidade vertiginosa. Ficamos assustados e para fugir tivemos que atropelar cadáveres. Algumas pessoas na multidão tropeçaram nos corpos. O tanque mudou de rumo cerca de 20 metros antes de chegar à estrada principal.
De repente, próximo à estrada, um prédio foi bombardeado. A explosão foi assustadora e estilhaços voaram por toda parte.
Eu queria que o mundo nos engolisse.
Estávamos abalados e exaustos, mas seguimos em direção ao acampamento Nuseirat. Chegamos lá à noite e tivemos que dormir na calçada. Estava congelando.
Colocamos minha jaqueta em volta dos filhos do meio, enfiando as mãos nas mangas para tentar mantê-los aquecidos. Cobrimos nosso filho mais novo com minha camisa. Nunca senti tanto frio em toda a minha vida.
Quando a BBC perguntou sobre o tanque e os corpos, as IDF disseram que "durante o dia, os tanques se movem em rotas que se cruzam com a estrada Salah al-Din, mas não houve nenhum caso em que os tanques se moveram em direção a civis que se deslocavam de norte a sul da Faixa de Gaza no corredor humanitário".
As IDF disseram não ter conhecimento de nenhum caso de pilhas de cadáveres na estrada Salah al-Din, mas houve momentos em que os veículos de Gaza "abandonaram corpos durante a viagem, que as IDF posteriormente evacuaram".
Na manhã seguinte partimos cedo para Khan Younis, a segunda maior cidade de Gaza. Pagamos alguém para nos levar parte do caminho em uma carroça puxada por um burro. Depois, em Deir al-Balah, pegamos um ônibus que deveria transportar apenas 20 pessoas, mas embarcaram 30 pessoas. Alguns sentavam-se no telhado e outros agarravam-se às portas e janelas pelo lado de fora.
Em Khan Younis, tentámos encontrar um lugar seguro para ficar numa escola gerida pela ONU que tinha sido transformada num abrigo, mas estava cheia. Acabamos alugando um armazém embaixo de um prédio residencial e ficamos lá por uma semana.
Os meus pais, irmão e irmãs decidiram ficar em Khan Younis, mas depois do mercado local ter sido bombardeado, a minha mulher e eu decidimos levar os nossos filhos mais para sul, para Rafah, para ficarmos com a família dela. Eles conseguiram uma carona em um carro e eu me juntei a eles mais tarde de ônibus, mas estava tão cheio que tive que me segurar do lado de fora da porta.
Agora estamos alugando um pequeno anexo com telhado de lata e plástico. Não há nada que nos proteja da queda de estilhaços.
Tudo é caro e não conseguimos muitas das coisas que precisamos. Se quisermos água potável, temos que fazer fila durante três horas e não temos comida suficiente para três refeições por dia, por isso não almoçamos mais, apenas pequeno-almoço e jantar.
Meu filho comia um ovo todos os dias. Um ovo - você pode imaginar? Não posso nem dar isso a ele agora. Tudo o que quero é sair de Gaza e estar seguro com os meus filhos, mesmo que isso signifique viver numa tenda.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2023
Lembranças e raízes
O passado sempre me assustou. Não pelo conjunto de vivências ou experiências, mas pelo vazio das ausências. Consciente da transitoriedade da existência, o desejo inconsciente da imortalidade é absolutamente inútil. E tudo passa. O realismo se impõe, mas que dói, dói. E quando me refiro ao vazio, à falta, não me limito às pessoas. Estendo um esforçado olhar para tudo que um dia foi paisagem natural ou dinâmica cultural que preencheu a vida
Todo dia 10 de dezembro, almoçava com velhos amigos na casa de Leonardo Silva, em comemoração ao aniversário do consagrado pesquisador e historiador pernambucano com quem convivi, desde os 11 anos de idade no bairro da Torre, e trabalhamos juntos em funções públicas. Com ele aprendi muito e a inteligência pernambucana foi engrandecida por sua competência e integral dedicação ao nosso rico e diversificado patrimônio cultural.
Seria um dia particularmente triste: exatos trinta dias do seu falecimento. A família, por desejo de Leonardo, manteve o almoço. O encontro, pouco convencional, ocorreu com a leveza e a beleza da vida nos dando a sensação de que ele orquestrava uma sinfonia de afetos. Brindamos a alegria e a aventurança de tão longa e indestrutível amizade.
Em mim, operou-se uma transformação. Como diria Nelson Rodrigues, tornei-me um ex-covarde. Desde morte de minha mãe, em fevereiro de 1985, não voltei à rua e às cercanias da casa onde morei, Bairro da Torre, como se pudesse apagar maravilhosas lembranças e as dores da saudade. Naquele dia, a coragem esbofeteou o sentimento mofino da fuga; abriu olhos interditados; iluminou a memória e confirmou o valor das raízes.
Fui a todos os lugares, completamente desfigurados pelo acelerado e desordenado processo de urbanização, mantidos intactos por força do processo de tombamento e iniciativa de Leonardo, a fachada da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a chaminé do primitivo engenho (depois olaria) a casa grande transformada no grupo escolar, hoje, denominada Escola Maciel Pinheiro aos quais prestei minha reverência.
Do romântico banco da praça (Barreto Campelo), compreendi o sentido do tempo da memória (título do belo livro de Norberto Bobbio – Ed. Campus, Rj, 1997) que não corre atrás de lembranças, mas olha para dentro de si mesmo, onde, dizia Santo Agostinho, habita a verdade.
Estas verdades são as raízes. E as raízes me chegaram nos três apitos (título de uma canção de Noel Rosa) que ecoavam do Cotonifício da Torre, às 14, 22 e às 6 horas da manhã determinando o fim e o começo das jornadas de trabalho; depois, veio a voz do locutor da festa de Santa Luzia (padroeira da visão e objeto da devoção pela proteção de acidentes que afetavam os olhos dos operários), voz sempre empostada, animando os frequentadores com músicas românticas e enviando mensagens cifradas de paqueras com um “assinado: pensando saberás”. Mais ao longe, a imagem do Rio Capibaribe marejou meus olhos.
O minúsculo fato provinciano reacendeu lembranças e revelou o valor das raízes, que só é possível no lugar de origem; no lugar pequeno em que se pode amar o próximo; e que os homens são mais iguais do que diferentes; que os sentimentos de mãe não conhecem fronteiras nem qualquer outra distinção.
Daí, uma das frases mais citadas de Tolstoi (1828-1910, escritor genial e um educador libertário): “Se queres ser universal começa por pintar a sua aldeia”; o cosmopolita e grande estadista, Joaquim Nabuco(1849-1910) definia seu sentimento político e afetivo de pertença em relação às suas raízes: “A verdade é que sinto cada vez mais forte o arrocho do berço”.
Neste sentido, duas das maiores filósofas do século XX, Simone Weil (1909-1943) ; e Hannah Arendt (1906-1975) nos legaram sólidas reflexões sobre a questão do enraizamento e do desenraizamento (este é o título de uma das obras admiráveis de Weil) enquanto que Arendt, ao discorrer sobre a banalidade do mal, identifica o mesmo fenômeno da experiência humana desenraizada em relação à amoralidade, à subserviência às ordens e ao acriticismo.
Todos os amigos homenageavam o homem da cultura na sua mais ampla expressão que compreendeu que as raízes são uma necessidade da alma e sua negação uma grave doença social.
Do banco da praça, rapidamente, fui inundado pelo pavor do ódio, da violência, da estupidez das guerras que naquele instante assassinavam pessoas e condenavam ao desaparecimento a casa, a vizinhança, a cultura, a terra, enfim, as raízes. Daí, brotam multidões de zumbis, sem passado e sem futuro.
Por mais ingênuo que possa parecer, sigo acreditando que é possível repartir mais igualitariamente o que o engenho humano produz, semear esperança, celebrar a paz e construir um mundo melhor para se viver.
Todo dia 10 de dezembro, almoçava com velhos amigos na casa de Leonardo Silva, em comemoração ao aniversário do consagrado pesquisador e historiador pernambucano com quem convivi, desde os 11 anos de idade no bairro da Torre, e trabalhamos juntos em funções públicas. Com ele aprendi muito e a inteligência pernambucana foi engrandecida por sua competência e integral dedicação ao nosso rico e diversificado patrimônio cultural.
Seria um dia particularmente triste: exatos trinta dias do seu falecimento. A família, por desejo de Leonardo, manteve o almoço. O encontro, pouco convencional, ocorreu com a leveza e a beleza da vida nos dando a sensação de que ele orquestrava uma sinfonia de afetos. Brindamos a alegria e a aventurança de tão longa e indestrutível amizade.
Em mim, operou-se uma transformação. Como diria Nelson Rodrigues, tornei-me um ex-covarde. Desde morte de minha mãe, em fevereiro de 1985, não voltei à rua e às cercanias da casa onde morei, Bairro da Torre, como se pudesse apagar maravilhosas lembranças e as dores da saudade. Naquele dia, a coragem esbofeteou o sentimento mofino da fuga; abriu olhos interditados; iluminou a memória e confirmou o valor das raízes.
Fui a todos os lugares, completamente desfigurados pelo acelerado e desordenado processo de urbanização, mantidos intactos por força do processo de tombamento e iniciativa de Leonardo, a fachada da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a chaminé do primitivo engenho (depois olaria) a casa grande transformada no grupo escolar, hoje, denominada Escola Maciel Pinheiro aos quais prestei minha reverência.
Do romântico banco da praça (Barreto Campelo), compreendi o sentido do tempo da memória (título do belo livro de Norberto Bobbio – Ed. Campus, Rj, 1997) que não corre atrás de lembranças, mas olha para dentro de si mesmo, onde, dizia Santo Agostinho, habita a verdade.
Estas verdades são as raízes. E as raízes me chegaram nos três apitos (título de uma canção de Noel Rosa) que ecoavam do Cotonifício da Torre, às 14, 22 e às 6 horas da manhã determinando o fim e o começo das jornadas de trabalho; depois, veio a voz do locutor da festa de Santa Luzia (padroeira da visão e objeto da devoção pela proteção de acidentes que afetavam os olhos dos operários), voz sempre empostada, animando os frequentadores com músicas românticas e enviando mensagens cifradas de paqueras com um “assinado: pensando saberás”. Mais ao longe, a imagem do Rio Capibaribe marejou meus olhos.
O minúsculo fato provinciano reacendeu lembranças e revelou o valor das raízes, que só é possível no lugar de origem; no lugar pequeno em que se pode amar o próximo; e que os homens são mais iguais do que diferentes; que os sentimentos de mãe não conhecem fronteiras nem qualquer outra distinção.
Daí, uma das frases mais citadas de Tolstoi (1828-1910, escritor genial e um educador libertário): “Se queres ser universal começa por pintar a sua aldeia”; o cosmopolita e grande estadista, Joaquim Nabuco(1849-1910) definia seu sentimento político e afetivo de pertença em relação às suas raízes: “A verdade é que sinto cada vez mais forte o arrocho do berço”.
Neste sentido, duas das maiores filósofas do século XX, Simone Weil (1909-1943) ; e Hannah Arendt (1906-1975) nos legaram sólidas reflexões sobre a questão do enraizamento e do desenraizamento (este é o título de uma das obras admiráveis de Weil) enquanto que Arendt, ao discorrer sobre a banalidade do mal, identifica o mesmo fenômeno da experiência humana desenraizada em relação à amoralidade, à subserviência às ordens e ao acriticismo.
Todos os amigos homenageavam o homem da cultura na sua mais ampla expressão que compreendeu que as raízes são uma necessidade da alma e sua negação uma grave doença social.
Do banco da praça, rapidamente, fui inundado pelo pavor do ódio, da violência, da estupidez das guerras que naquele instante assassinavam pessoas e condenavam ao desaparecimento a casa, a vizinhança, a cultura, a terra, enfim, as raízes. Daí, brotam multidões de zumbis, sem passado e sem futuro.
Por mais ingênuo que possa parecer, sigo acreditando que é possível repartir mais igualitariamente o que o engenho humano produz, semear esperança, celebrar a paz e construir um mundo melhor para se viver.
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